Eléctrico chamado Orçamento

A negociação política é a única forma de concretizar o Orçamento a benefício da nação. A alternativa é a mentirosa fantasia do progresso.

Não existem negociações para o Orçamento. Pior ainda. O processo de contactos é um dispositivo político para iludir responsabilidades. Parece que conversam, mas usam linguagens diferentes. Parece que apresentam propostas, mas escondem-se atrás de falsos princípios políticos. Ninguém está interessado no país nem nos portugueses nem no Orçamento. Tudo se resume ao oportunismo das medidas dilatórias para declarar vitória política por indecente e má figura. Nos comentários circulam as acusações de “infantilidade”. Mas conceder dignidade política à infantilidade é uma forma de legitimar a infantilidade e de justificar o impasse. A infantilidade é uma forma de incompetência política. A falsa infantilidade é uma forma de cinismo político. Se Portugal está refém de políticos infantis então a democracia portuguesa é superficial e uma ilusão perigosa. Goste-se ou não, a superior incompetência da política e dos políticos é um insulto ao país. Adulta ou infantil.

O IRC e o IRS Jovem são abcessos de fixação que servem para justificar o mais medíocre exercício político sobre o Orçamento. Enquanto se discutem as famosas “linhas vermelhas” como sintoma de integridade política, esquece-se que a linha vermelha é o símbolo internacional para os funcionários das organizações que operam em zonas de catástrofe e de ajuda humanitária. O Orçamento em Portugal aproxima-se de uma zona de catástrofe e os políticos competentes devem ter em linha de conta esta designação alternativa da linha vermelha. Mas não. Linha vermelha é sintoma de pureza ideológica. A linha vermelha vem substituir a complexidade estrutural da política por uma espécie de mapa virtual do conforto e da beleza – o conforto de quem não assume responsabilidades e a beleza de quem se assume como incompetente. Os portugueses devem estar atentos ao álibi das linhas vermelhas.

O que falta para as negociações sobre o Orçamento é a dimensão implacável da política e a dimensão épica da política. Existe dureza, crueldade, manipulação, verdade e mentira em todas as negociações. Só assim o espaço das diferenças pode ser percorrido com significado e projectado no resultado das negociações. E as negociações para o Orçamento entre o PS e a AD são um simulacro amador de um cálculo de mercearia no segredo dos gabinetes. É tudo feito à distância e distante do contacto físico abrasivo que um processo negocial real e verdadeiro exige. Primeiro o Governo fala para as televisões. Depois o PS responde para as televisões. As negociações para o Orçamento de Estado não podem ser uma espécie de “casamento por procuração”. Entre o desejo de eleições e o eleitoralismo sem perspectivas, as negociações para o Orçamento são como um casamento em Las Vegas.

O Orçamento está transformado numa ficção entre os filhos da meia-noite e os versículos satânicos. O que não deixa de ser extraordinário é que Portugal está a dias de entregar um Orçamento. Na realidade, parece que não existe apenas um Orçamento. No acidentado simulacro de negociações, o país parece que tem dois Primeiros-Ministros. Há o Primeiro-Ministro oficial com residência em São Bento e há o Primeiro-Ministro oficioso com residência no Parlamento em São Bento. Maior exemplo do circuito fechado da política portuguesa é esta concentração no paroquialismo de uma geografia minúscula. No entanto, não é possível encontrar um consenso sobre a medida mínima para viabilizar o Orçamento. No PS sobra soberba, ressentimento, arrogância. No Governo sobra soberba, deslumbramento, arrogância. O PS é só gestos e virtudes. O Governo é só gestos e virtudes. Governo e PS são cópias fáceis de uma mentira que se chama negociação. No final existe na política portuguesa o mistério de um Orçamento que percorre São Bento como um eléctrico chamado desejo.

O Orçamento também revela o voluntarismo do Presidente da República, espécie de mediador ecuménico na iminência de uma terceira dissolução do Parlamento. No nevoeiro da dissolução descobre-se então as virtudes políticas da governação em duodécimos. O Orçamento revela ainda a existência de uma nova esquerda inútil. Vocal nas declarações políticas retóricas, a esquerda à esquerda do PS está simplesmente para votar contra tudo o que se move na política portuguesa. O Orçamento revela também a existência de uma direita inútil. Maioritariamente silenciosa, a direita à direita do PSD está reduzida ao grau zero das convicções políticas do Chega, o partido do não porque sim e do sim porque não. A política em Portugal sofre de uma perturbação da personalidade dependente.

Para o Governo, o Orçamento é a perfeição. Para o PS, o Orçamento é a imperfeição. O que o Governo e o PS ignoram é que a perfeição é desumana. A negociação política é a única forma de concretizar o Orçamento a benefício da nação. A alternativa é a mentirosa fantasia do progresso.

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