Em mar de piranhas, jacaré nada de costas (III)

De Lisboa a Paris, passando pela nova ministra da Cultura e pelas exposições de Hockney e Bordallo II.

A primeira mensagem de Lisboa para quem sai do aeroporto e entra na rotunda do relógio é um cartaz do Bloco de Esquerda com uma frase esclarecedora: taxar os ricos.

Acho que é uma ideia interessante e que deve ser aprofundada (talvez traduzindo-a para quatro ou cinco línguas), para inibir o turismo, uma forma eficaz de estabelecer linhas vermelhas para os que chegam e que poderá mesmo desencadear uma vontade irreprimível de dar meia-volta e apanhar o voo de regresso. É isso, aliás, que se pretende, certo? Mas, a capital portuguesa é uma caixinha de surpresas. Se o turista incauto sobrevive ao primeiro embate, convém que se prepare para atravessar a selva de matagal em que se tornou a Avenida Gago Coutinho: arbustos, ervas daninhas e capim abundante saúdam-no efusivamente à chegada a uma capital supostamente europeia e cosmopolita. Para mensagem de boas-vindas, não me passaria pela cabeça nada de melhor.

O que interessa na Cultura

Há uma cultura de direita por contraponto a outra de esquerda? Ou esta discussão ressurgiu simplesmente como resultado da vertigem fundamentalista, e muitas vezes delirante, do movimento woke, e da sua consequência mais direta – a política de cancelamento com cortes às subvenções e apoios culturais que Trump lidera e começa a fazer escola pelo mundo fora?

A fractura entre Direita e Esquerda, no que concerne à Cultura, parece-me francamente artificial – a não ser que estejamos a pensar nos comedores de tofu, obcecados pelas questões de género, ou, em alternativa, nos conservadores que pararam em meados do século XX e resistem a tudo o que é contemporâneo.

Se no passado recente, muitos programas culturais foram suportados pelo orçamento colectivo apenas por razões ideológicas ou de género, a fúria de cancelamento a que estamos a assistir é uma mistura explosiva de vingança, de ressentimento e, sobretudo, de ignorância. Acredito que este debate, pelo contexto e pelas circunstâncias políticas em que vivemos, acabará por nos bater à porta.

A decisão de juntar a Cultura, o Desporto e a Juventude no mesmo ministério já permitiu aflorar a questão – é, para alguns, a demonstração inequívoca de que a Direita desvaloriza os temas culturais, ao ponto de os acantonar numa espécie de albergue espanhol.

Não é, porém, essa a questão essencial – o que releva é saber se a nova ministra da Cultura vai olhar e ouvir a comunidade artística com a empatia e respeito que ela merece, valorizando as suas diferentes manifestações e criando as condições para combater a precariedade do sector e os incentivos para promover a sua prosperidade. E se terá a liberdade de pensar a Cultura sem os condicionamentos ideológicos e de facção que, frequentemente, a contaminam.

Os artistas não se reformam: Hockney em Paris

Em Paris, uma grande, e talvez excessiva, retrospectiva de David Hockney mostra 70 anos de vida artística em mais de 400 obras. Ali estão as primeiras obras em que aborda a homossexualidade, as maravilhosas pinturas figurativas e as famosíssimas piscinas, as paisagens da Normandia que pintou durante o Covid e a que chama Ipad paintings, as reinterpretações de obras históricas como Os Jogadores de Cartas de Cézanne, o video, filmado do seu Jeep, sobre a chegada da primavera, e um mural em que exibe toda as suas influências (Van Gogh, Delacroix, Durer, ou Rafael, entre muitos outros).

A exposição, patente na Fondation Louis Vuitton, é um êxito de público, atestado pelas filas intermináveis, e começa com um pequeno retrato do seu pai, pintado quando tinha 17 anos. Aos 87 anos, Hockney mantém um espírito jovem e aberto – numa recente entrevista afirmou: “Nunca fui contra as novidades. Experimento-as e vejo se são úteis para mim. Uma nova tecnologia aparece e inspira-me com novas ideias“.

Essa energia está patente no seu mais recente autorretrato, feito este ano no seu atelier de Londres, e a que chamou ´Play Within a Play Within a Play and Me with a Cigarrette´. É precisamente nesta tela que Hockney se retrata com um pin na lapela´com a frase ´End Bossiness Soon’ . Numa entrevista recente ao Nouvel Observateur, conduzida pelo cineasta Olivier Assayas, explicou o que pensa destes tempos que vivemos: “Há muita gente autoritária nos dias de hoje, o que é totalmente ridículo. Pessoas que pensam que vão viver para sempre. Não é o meu caso. Farei 88 este ano. Para mim, já chega“. E, na mesma conversa, explicou o que espera do futuro: “Eu continuo porque preciso de continuar – eu quero continuar. Os artistas não se reformam, um dia, eles, simplesmente, caem. É o que eu farei. E é isso que eu espero“.

 

A Fondation Louis Vuitton foi inaugurada em outubro de 2014 e já recebeu mais de 11 milhões de visitantes. A exposição ‘David Hockney 25’ estará patente até 31 de agosto de 2025. O preço do bilhete é de 16 euros.

O caminho de Bordallo II

Há felizmente vários artistas portugueses com exposições em Paris: João Queiroz na Galerie Bernard Bouche, Isabelle Ferreira (que tem dupla nacionalidade) na Drawing Lab, e Bordallo II na MATHGOTH.

A exposição de Bordallo II, que tem sido visitado por inúmeros alunos e escolas parisienses, retoma linhas de trabalho que reflectem sobre a relação entre os homens e a Natureza (com um interessante video em que a equipa do artista vagueia por Paris carregando néons de animais que invadem a paisagem urbana).

Ao trabalho disruptivo do artista, que já conquistou colecionadores e o grande público (a exposição está quase toda vendida), falta ainda a legitimação da crítica e das instituições culturais. A série ‘Provoc’, que interpela e suscita a reflexão sobre temas da actualidade, pode ajudá-lo nesse caminho.

‘Irréversible’ de Bordallo II está em exposição até 28 de junho na MATHGOTH Galerie na Rue Alphonse Boudard, em Paris.

  • Colunista regular. Diretor Geral e Administrador da Fundação EDP

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