Incêndios e outros fogos que ardem sem se ver
A questão da floresta e dos fogos tornou-se urgente: em 2017 morreram demasiadas pessoas. Mas não é caso único. Há mais sectores onde caminhamos sistematicamente em cima do arame, à espera da queda.
Um ano depois, foi a vez do Estado passar a si próprio o atestado de incompetência, incúria e trágico falhanço na primeira e mais nobre das suas funções: a defesa das populações e da vida humana.
O Estado fez em 2018, no incêndio de Monchique, o que já estava obrigado a fazer nos incêndios de 2017 de Pedrógão Grande e, mais tarde, da região centro. Colocou a vida humana como prioridade absoluta e accionou os meios necessários para a cumprir.
Afinal pode e deve ser feito, assim as estruturas de Protecção Civil e o poder político que as tutelam o façam acontecer.
Não vou perder tempo com a inenarrável discussão que por aí nasceu – vivemos tempos em os incêndios ocorrem ao mesmo tempo na floresta e nas redes sociais – sobre se as autoridades foram demasiado firmes a obrigar pessoas a protegerem-se das chamas ou, pior ainda, se o Estado deve fazê-lo. A diferença é que as pessoas que terão sido forçadas a sair de suas casas em Monchique estão vivas para poderem protestar e no ano passado, como sabemos, 116 pessoas não sobreviveram.
O Estado cumpriu então, este ano, o mínimo que lhe é exigido. Isso não deve ser motivo de glória ou de vitória sobre o que quer que seja porque, bem vistas as coisas, em relação à floresta estamos sensivelmente no ponto em que estávamos em Maio de 2017.
É evidente que nunca será em um ano – nem em dois ou três – que se muda estruturalmente o que leva tantas décadas de desleixo, falta de políticas e assertividade dos poderes públicos.
Mas, neste como noutros casos, são necessários todos os ingredientes em que, por regra, somos medíocres: estudo e planeamento sustentados em conhecimento e não em mitos ou preconceitos, acção coordenada e colaboração entre várias “capelinhas” públicas e privadas, estabilidade de políticas ao longo de décadas e avaliações regulares que possam levar a eventuais correcções. Falta, como se diz em “politiquês” e “comentarês”, “vontade política”.
Inevitavelmente, quando não se cuida as desgraças acontecem. Aí já é demasiado tarde mas torna-se insustentável não fazer nada. Entra-se então num corrupio de medidas soltas e de emergência, leis em cima do joelho, comissões técnicas, criação de novas estruturas do Estado e todo um frenesi que, por mais bem intencionado que seja, pouco mais consegue do que tentar substituir a ponderação e planeamento pela transpiração e improviso.
A questão da floresta e dos seus incêndios está à vista de todos e tornou-se urgente porque em 2017 morreram demasiadas pessoas. Mas não é caso único. Olhando à nossa volta, sabemos que há mais sectores onde caminhamos sistematicamente em cima do arame.
Sabemos que é assim com a sustentabilidade das contas públicas e da dívida. A bancarrota de 2011 tornou o problema evidente e inegável para todos. Mas nem tinha começado aí nem está resolvido. Longe disso. Entre a austeridade urgente assumida e a austeridade disfarçada transformada em gestão orçamental corrente, continuamos expostos aos solavancos económicos que, tarde ou cedo, acontecerão inevitavelmente.
Incapazes de reformar e tornar o Estado sustentável, achamos que é com cativações que o problema se resolve. Não é. A redução do défice que está a ser feita credibiliza o país e ajuda a conter a dívida mas o método seguido tem prazo limitado, como se tem visto pelo impacto nos serviços do Estado.
Com a Segurança Social não é diferente. Não há governo que não jure que salvou o sistema. Ainda recordo o primeiro-ministro António Guterres ter garantido, sem se rir, que umas alterações feitas então na fórmula de cálculo das pensões garantiam o equilíbrio das contas por 40 anos. Meia dúzia de anos depois, o governo de José Sócrates voltou a fazer mudanças para garantir, agora sim, a viabilidade do sistema. Tudo medidas necessárias e meritórias, sem dúvida, mas que não passaram de remendos que não garantem a sustentabilidade, apenas adiam os desequilíbrios. Podemos assumir que no futuro vamos ter pensões cada vez mais baixas e viver bem com essa ideia. Mas conseguiremos lidar com o aumento da pobreza que isso implicará?
Podemos também falar do impacto da demografia – provavelmente a questão mais difícil e mais importante que temos em mãos, tal é o seu impacto transversal que tem – e da timidez de propostas e de debate que tem merecido, para não falar da ausência de políticas.
Ou da desertificação do interior, agora evidente também pela sua relação com a gestão do território e incêndios florestais. Identificada há décadas, pouco ou nada se fez de sustentável e eficaz para tentar travá-la. É preciso muito mais do que fazer estradas que, afinal, têm dois sentidos e também servem para as pessoas se mudarem para os grandes centros urbanos.
A diferença entre estes desequilíbrios que estão à espera de se transformar em colapsos e os incêndios florestais é que, pela sua natureza, acontecem de forma muito prolongada no tempo, provocam o empobrecimento e a morte lenta e, sobretudo, não resultam em imagens fortes e chocantes para a abertura dos telejornais. Mas, na sua essência, padecem também da nossa grande incapacidade para actuar com consistência antes de ser demasiado tarde.
Nota: O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.
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