Motel América

A realidade é a de uma América que se está fracturar e a polarizar a uma velocidade incontrolável.

América. A última fronteira. O discurso político de Trump tem o ritmo metálico de uma rajada produzida por um gangster rapper devorando quilómetros de luz nas ruas da América. Há demasiado ruído, demasiada mentira, um infernal ritmo na cadência do privilégio dos hotéis de luxo, das mansões de sexo, do perfume do dinheiro, há sobretudo a exploração da tristeza indizível dos subúrbios americanos, das cidades cheias de lugares suspeitos, guettos, zonas de asfalto negro onde nascem automóveis velhos e gente sem futuro.

Na América de Trump não existe o Sonho Americano, mas a versão servida ao balcão de um Clube de Striptease do Inferno Americano transformado em guião político. Trump, o negacionista covid, esteve no debate como portador do vírus da China, distribuindo à velocidade de vinte e quatro imagens por segundo a doença pelas luzes da ribalta. Em Trump a política é a versão respeitável da pornografia. O debate presidencial parecia um anúncio incandescente em plena Times Square.

As gigantescas letras interrogam a América e o Mundo com uma questão inquietante – “Patéticos Cidadãos, Quem Vos Pode Salvar Agora?” Entre flashes da Casa Branca, clips dos tumultos em chamas nas ruas de uma América sem nome e imagens editadas do Império, a resposta aparece na mitologia irreal de um nome: Donald Trump. É a insanidade, a mentira, o vício, que olham para o cidadão normal obedientemente sentado no escuro de uma cadeira de cinema com vista para o enredo das estrelas. A vulgaridade banal de Trump transforma a imagem da América no cemitério de uma ideia política generosa, na devastação da cidade na colina, na irrealidade de uma Nação que pretende abandonar o estatuto de indispensável. A América só pretende ser grande como o seu Herói, eterna, famosa, a versão idolatrada de uma Elizabeth Taylor com um olhar violeta sobre o Mundo.

Depois vem a realidade. E a realidade é a de uma América que se está fracturar e a polarizar a uma velocidade incontrolável. Quando as nações se unem em torno dos seus governantes face à ameaça da pandemia, a América utiliza a pandemia para exacerbar as grandes divisões ideológicas, históricas, sociais. É verdade que o Presidente Trump não criou estas clivagens, mas é certamente verdade que as tem utilizado como arma política eleitoral para atacar opositores, rivais, inimigos. O que está em causa não é uma mera divergência política entre Republicanos e Democratas, nem o aumento da intensidade e da frequência dos conflitos entre brancos e negros. O que está em discussão e em dúvida é o mito fundador da nação americana.

O revisionismo do mito fundador da América está bem evidente no denominado Project 1619. Nesta versão da América, a nação não terá nascido no momento da Declaração da Independência assinada em 1776, nem quando os “Fundadores Peregrinos” partiram de Inglaterra em 1620. Nesta nova versão da História da América, a nação teria nascido quando os primeiros escravos foram transportados de África para o Continente. Os fins ideológicos parecem óbvios e passam pela associação da fundação da República Americana à exploração da escravatura como instituição essencial ao progresso da América. O prolongamento destas duas Américas disputa hoje as eleições do mesmo modo que se confrontam nos tumultos que incendeiam as cidades.

O que está verdadeiramente em ebulição é a fábrica social da América como esta se desenvolveu e influenciou o Mundo. Subitamente é uma nova versão radicalizada do anti-americanismo americano. A América não tem redenção porque tem como fundação a escravatura e a opressão.

A América está assim dividida em duas facções irreconciliáveis.

Uma primeira facção que ainda celebra a História, os Pais Fundadores, a Constituição, a Bandeira, o Hino. Esta facção identifica-se com os símbolos e a glória do passado, com o culto da Liberdade e com a ideia democrática de um excepcionalismo americano.

A segunda facção declara a denúncia do excepcionalismo americano como a expressão de um erro político, como o corolário de uma sociedade injusta e desigual, estruturalmente racista e fundada na exploração e na opressão.

As facções são o lado positivo e o lado negativo de uma polaróide impossível.

Entre estas duas atitudes políticas não existe consenso, nem se observa uma posição política intermédia onde se possa instalar o compromisso. Existe a ficção política de que quem ganhar as eleições em Novembro poderá começar o trabalho político da reconciliação. No caso de Trump, este explora sem qualquer escrúpulo ou hesitação a fractura para efeitos eleitorais. É por esta razão que um segundo mandato do Presidente Trump representa a vitória do dono do casino e a oportunidade para a escalada do conflito civil. No caso de Biden, apresenta-se como demasiado distante, demasiado débil, demasiado decente, para o trabalho político da reconciliação. É por este motivo que um Presidente Biden é considerado como uma espécie de Presidente de transição.

A América precisa urgentemente de uma figura com dimensão histórica. Um Presidente para além da política partidária, para além da política da identidade. Um magnata no cockpit de uma central atómica é uma ficção Zen aos comandos de uma Harley Davidson tal qual um meteoro na Route 66.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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