Multiculturalismo & Medalhas Olímpicas
As Medalhas Olímpicas representam a face de um Portugal pós-colonial, reconciliado em parte com outras e muitas formas de ser português. São Medalhas com rumba, com quizomba e com o vira.
Os Jogos Olímpicos apanharam os portugueses de surpresa. Subitamente a maior concentração de medalhas da histórica olímpica nacional chega a Portugal ao pescoço de luso-africanos, um refugiado político, todos de pele negra e em flagrante contraste com o herói de Ponte-de-Lima. Mas será que as Medalhas Olímpicas, para além da cor do ouro, da prata, do bronze, também contemplam a cor da pele? A resposta é não.
A cor dos metais faz lembrar a hierarquia das almas de Platão, mas este não parece ser a fonte e a origem do ideal olímpico. O ouro, a prata, o bronze, distinguem a performance em campo aberto e com regras comuns onde os melhores disputam a supremacia nas respectivas modalidades. Não há medalhas para brancos, negros, asiáticos, há medalhas para as melhores performances dos melhores atletas. Para simplificar, se existe um ideal olímpico este baseia-se na igualdade de oportunidades e no espírito de competição. De certo modo, politicamente, os Jogos Olímpicos exibem uma inesperada dimensão liberal.
Mas uma dimensão liberal em que o espírito nacionalista não está ausente. Delegações nacionais, cores nacionais, bandeiras das nações, hinos das nações. Um evento cosmopolita para celebrar o espírito universal da diversidade nacional. O paradoxo está na celebração da igualdade através da diferença representada no compasso das modalidades desportivas. E Portugal pertence a esta nova comunidade onde as diferenças internas se manifestam na representação externa do País.
Quando os portugueses de herança africana sobem ao pódio olímpico, tal significa que a sociedade portuguesa mudou muito nos últimos cinquenta anos. O que se pode observar são portugueses que se elevaram do anonimato através do desporto profissional. E por cada português medalhado existem milhares de portugueses de herança africana, asiática, que contribuem todos os dias para o pleno funcionamento da Nação. Muitos integram a massa anónima dos “trabalhadores indispensáveis” que a pandemia veio retirar da sombra e da clandestinidade do reconhecimento social.
O que se pode concluir é que à revelia da política, à revelia das políticas mais ou menos ineptas de integração, em paralelo à apologia do medo e dos discursos tremendistas, as Medalhas Olímpicas representam a face de um Portugal pós-colonial, reconciliado em parte com outras e muitas formas de ser português. Medalhas com rumba, medalhas com quizomba, medalhas com o vira, mas medalhas para um Portugal multicultural, complexo, plural, imperfeito, uma versão universal de uma Nação que aprende todos os dias a dificuldade do convívio secular ao som sonoro de um outro fado tropical.
Este discurso não é a versão democrática e republicana de uma nova geração de luso-tropicalistas, não pretende a absolvição dos excessos coloniais, nem se apresenta ao debate público como a exibição de uma quase obrigatória auto-flagelação dilacerada e de cabeça baixa de um passado colonial. Esta é a voz de um Portugal moderno, aberto aos contributos de todas as experiências da lusofonia que, num determinado momento, encontram no Portugal europeu a estabilidade, a singularidade, a prosperidade para se projectarem no Mundo. E nesta língua que nos une em múltiplas versões, é possível criar a realidade de uma luso-esfera com a força política e a projecção cultural internacionais que o passado comum justifica, mas que o futuro global legitima e exige.
As Medalhas Olímpicas servem para demonstrar que as propostas políticas que se baseiam na uniformidade oficial e única são falsas e perigosas. A cultura portuguesa enriquecida secularmente pela sua complexa experiência histórica acaba por revelar-se auto-unificadora, acaba por exibir-se como cenário no grande palco do Mundo onde muitas e múltiplas expressões culturais têm lugar, têm sentido, têm dignidade. O verdadeiro mérito de qualquer desportista, escritor, artista, não está apenas na satisfação de um propósito pessoal, está sim na tentativa de levar a sua experiência ao limite e ao limiar de algo maior que possibilita e dá significado à sua obra ou performance. Para todos os efeitos são a imagem de Portugal no concerto das Nações. E estar entre os melhores é ser um dos melhores. Ponto final.
Alguém poderá explicar por que motivo um jovem africano da Damaia, nascido num bairro social, criado por uma mãe-solteira, deverá ser espoliado das suas raízes culturais, deverá ser excluído da sua identidade e experiência portuguesas, deverá ser negado o tratamento como membro de pleno direito da sociedade nacional para poder construir uma nova vinculação na comunidade de todos os estranhos e de todos os conhecidos que perfazem o País Portugal? E um dia, contra todas as probabilidades, subir ao pódio olímpico e prometer dançar o pimba para francês ver nas próximas Olimpíadas?
Para além do pobre horizonte das felicitações de circunstância em tweets banais e ao estilo de um postal de férias ilustrado, é necessário sublinhar politicamente que a nossa identidade é parcial e plural. Por vezes parece que oscilamos entre duas ou mais culturas, parece sempre que estamos sentados entre duas cadeiras. Sem conjecturas ou refutações esta é a realidade. A exacta realidade das Medalhas Olímpicas.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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