Na Cristina, a pregar aos convertidos

Lá por fora, a revolução digital transformou as campanhas eleitorais. Em Portugal, os políticos renderam-se à Cristina, fazendo política como no século passado. O problema é o vazio que se abre.

Há livros que nos escolhem nas primeiras páginas. Em “Democracy Hacked”, Martin Moore conseguiu isso comigo, quando começou a descrever como era a campanha eleitoral em que acompanhou o seu pai, então candidato. Foi porta a porta, tentando convencer cada eleitor sobre a bondade das suas propostas. Ano: 1974.

Professor na Kings College, especialista em poder, Martin Moore deixa o aviso logo no segundo parágrafo: este mundo acabou. A democracia dos partidos tradicionais, hierárquicos e “centristas” acabou, como acabou a ideia de que os políticos devem informar e comunicar com os cidadãos através, apenas, dos meios tradicionais. Como acabou, também, a ideia de que cada um de nós é um eleitor anónimo.

Em tradução livre, sugiro-lhe apenas a leitura destes dois parágrafos:

Quase meio século depois, as campanhas políticas estão irreconhecíveis. São municiadas com montanhas de dados sobre os eleitores, definidas através de modelos algorítmicos, que são usados para criar mensagens dirigidas a cada um dos eleitores desejados”.

Você já não é um eleitor anónimo, residente na 43 Belvedere Avenue. É, sim, conhecido por centenas de dados que capturam o que compra, o que lê, o que vê, quanto ganha, o que sabe e do que mais gosta. Juntando todos estes dados, os candidatos conseguem saber se é mais eficaz chamar a sua atenção, apelar a que o financie ou até a desencorajar o seu voto” — se estiver mais inclinado a votar noutro partido.

2.

Por cá, chegou a grande inovação na campanha política: António Costa foi à casa da Cristina e bateu recordes, chegando a estonteantes 745 mil espectadores — o melhor número de sempre num programa das manhãs da tvs. Não foi o primeiro: Marcelo já tinha telefonado, Cristas já tinha feito um arroz de atum. Subitamente, os políticos descobriram que basta tocar à campainha da mulher mais popular do país para conseguir chegar aos eleitores, quiçá para diminuir a abstenção. É um maravilhoso mundo novo, não é?

Não, não é. Não é inovador, porque os mesmos políticos já tinham ido, por exemplo, ao Alta Definição da SIC. E é preguiçoso porque os partidos e os seus líderes continuam a fazer política como há 10, 20, 30, 40 anos. Passam as segundas e sextas a fazer conferências com salas cheias de pessoas engravatadas. As terças, quartas e quintas a fazer longas e vãs discussões parlamentares. Usam os fins de semana fazer comícios. E quando chegam as campanhas eleitorais desatam a correr uma dezena de ruas e mercados, ao dia. Como se isso, como se tudo isto, convencesse um cidadão, em pleno século XXI a votar.

3.

Impressiona que ainda não tenha tocado, nas sedes, o alarme da descrença no sistema. Impressiona ainda mais que não tenha aparecido alguém que, percebendo isso, aproveitasse para preencher o espaço.

Sim, há Marcelo. Mas Marcelo não é um político do novo século. Ele percebe o essencial: que hoje não é possível fazer política sem mostrar às pessoas que se quer chegar a cada uma delas. Só que não o faz com os métodos de hoje, mas com os do antigamente: porque é Presidente, porque tem tempo e disponibilidade pessoal para isso, Marcelo corre cada freguesia do país para dar a possibilidade a cada português de trocar um passou-bem, uma palavrinha, uma selfie com ele. E ouve, conversa. Sem tempo, porque o tem todo.

António Costa, por exemplo, não tem o tempo todo — como não terá Assunção Cristas, que é também deputada, vereadora em Lisboa e tem que preparar o partido para a luta de ideias (vá, vamos ter fé).

Mas, sem tempo, António Costa inova tocando à campainha da Cristina. É muito pouco.

Afinal, quem é que vê o Programa da Cristina? Resposta geométrica: os mais velhos, que são quem mais vota; os desempregados, sobretudo os de longa duração — que não querem sequer ouvir falar dos políticos, muito menos a cozinhar cataplana. Na Cristina, Costa está ainda no século XX no modo de fazer política. Na Cristina, está a pregar aos convertidos.

No resto, é pré-história: António Costa, como o PS, tem uma conta no Instagram — mas usa-a para fotos institucionais, que nada acrescentam ao registo do dia-a-dia. Tem também uma no Facebook, mas não tem um post desde 2016. A caixa de comentários é o terror de todos os políticos.

Não pense que é o único. Rui Rio, por exemplo, aprendeu agora o que é o Twitter. E a página de Facebook quase não é usada. Instagram? Não usa. Nem vale a pena falarmos dos dados e preferências dos eleitores — para eles, sim, continuamos anónimos da rua X do país chamado Portugal. Parece bom, mas o problema é o espaço vazio que se abre.

4.

Isto não é um problema de somenos, porque as novas gerações votam cada vez menos. Com a democracia normalizada, com os efeitos da crise a criar descrença e com os políticos metidos num fato do século XX, essas gerações não vão procurar os políticos, a menos que os políticos os procurem a eles.

A revolução na comunicação digital trouxe, aos mais novos, uma nova exigência: cobram-nos (a nós, jornalistas, mas também aos políticos) uma enorme proximidade, uma absoluta genuinidade, a capacidade de os ouvir e de interagir. Sem as verem, afastam-se. Seguramente não votam.

Não se surpreenda, portanto, com o que aí vem. Nas próximas europeias terão direito de voto, pela primeira vez, os jovens nascidos já no século XXI. Tudo indica que não serão muitos a votar.

Junte a isto o efeito da nova lei que incluiu nos cadernos eleitorais mais de um milhão de novos eleitores, quase todos a viver fora do país e sem limpar os cadernos devidamente. E adicione o habitual desinteresse pelas europeias, que em 2014 resultou numa abstenção de… 66%. Nas próximas, pode bem passar os 70%.

5.

E dizia eu um pouco acima: o problema é o espaço vazio que se abre. Deixe-me voltar ao Martin Moore, porque ele explica melhor do que eu:

A preponderância das plataformas como o Google, Facebook e Twitter está a agredir as nossas eleições, a despejar os candidatos convencionais e a afogar os partidos centristas. Está a reestruturar a nossa política, a minar as instituições e a rever o papel do cidadão. Está a dar abertura a quem não o tinha, a criar espaço para fugir às regras e a dar oportunidades para jogos e distorções”.

Se pensar bem nisto, foi assim que o Reino Unido acabou assim, que Itália chegou onde chegou, que a América elegeu quem elegeu.

Quando o espaço se abre, há sempre quem aproveite. Por cá, enquanto é tempo, era bom que fossem eles — os que, apesar dos defeitos, apesar do atraso, ainda têm uma noção bastante razoável do bom-senso e do sentido de dever.

Ainda faltam sete meses para as legislativas.

Notas soltas da semana

Insignificante, sr Presidente? Marcelo, o Presidente, diz que a polémica sobre o “pedido de desculpas” de Santos Silva ao MNE de Angola é “insignificante”. Já Marcelo, o comentador, dizia que o pedido de desculpas de Rui Machete (MNE de Passos Coelho) ao MNE angolano devia acabar com a saída deste do Governo. É tão diferente ser Presidente…

A justiça é cega, mas não autista. O presidente da Relação do Porto tirou os casos de violência doméstica a Neto de Moura, mostrando que há justiça na justiça. Com isso, felizmente, tirou o argumento a Rui Rio de que o corporativismo no sector obrigava a politizar mais o Conselho Superior de Magistratura.

O banco péssimo, o banco mau e o banco bom. António Costa tem razão: a resolução do BES criou um banco péssimo e um banco mau. Pena que se tenha esquecido de dizer que a venda posterior tenha criado um banco bom, que só serve a Lone Star. Com uma ajuda do Orçamento do Estado.

Ainda sobre o péssimo, mau e bom: será que Carlos Costa ainda se lembra que achava que a venda do Novo Banco ia ser um case-study? E Maria Luís, lembrar-se-á que prometeu vender o banco em um ano ou que a banca iria pagar o “empréstimo”? E Centeno, que ainda há um ano mostrava-se convicto que agora os encargos iam começar a descer? Infelizmente, o Bloco tem razão: não há ninguém que não se tenha enganado. Infelizmente, não creio que o Bloco tenha razão: tudo isto podia ter sido melhor, mas muito poucochinho.

Uma pergunta sobre o Novo Banco: se o Estado nomeou três pessoas para supervisionar os activos que o Lone Star está a limpar, o que é eles nos têm a dizer sobre este novo pedido de financiamento público? E o Estado vai pedir uma auditoria sem conhecermos o seu relatório e contas?

A guerra de Costa a Costa. E se o primeiro-ministro estiver a usar esta polémica para forçar o PSD a aprovar a sua reforma da regulação financeira, incluindo a nomeação dos vice-governadores pelo Governo e o alargamento do poder de destituição pelo Parlamento?

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