O dogmatismo fiscal português
Uma estratégia de recuperação económica e sobretudo de adaptação não pode ignorar a importância e mesmo a necessidade urgente de uma reforma fiscal.
De tempos a tempos, normalmente pela altura da discussão do Orçamento do Estado, surgem grandes discussões sobre os impostos em Portugal. Esgrimem-se argumentos na praça pública sobre a carga fiscal, quem paga IRS, taxas e contribuições, etc. É uma conversa recorrente em que o contribuinte (famílias ou empresas) já sabe de antemão que o tema “impostos” anda lado a lado com a palavra “subida”. Fica sempre por se perceber, afinal, em que é que o Estado gasta o dinheiro dos contribuintes quando, por exemplo, as notícias diárias sinalizam um SNS cronicamente subfinanciado.
A verdade é que o espartilho dos impostos condiciona muitas vezes o investimento. Um clima fiscal mais amigo das empresas seria determinante para atrair investimentos e criar emprego, com todas as consequências que daí advêm em matéria de receitas fiscais entendidas no global (com contribuições sociais). Os objetivos de longo-prazo da transição climática e digital também passam pelo tema da fiscalidade. O nosso sistema fiscal tem por isso de ser ajustado aos referidos objetivos, mas para já a discussão acerca dos impostos continua amarrada a um debate ideológico altamente condicionada pelo PCP e Bloco de Esquerda. Sem um plano sério, também nesta matéria Portugal arrisca-se a ficar para trás.
O cenário que enfrentamos é difícil e exigente. A Comissão Europeia antecipa, nas previsões económicas de Outono [1], uma recessão económica de 7,4% na União (7,8% na Zona Euro) que, em Portugal, alcança os 9,3%. Basta ter estes números em mente (assentes numa realidade anterior aos últimos confinamentos), para perceber a dimensão do que temos pela frente. Neste cenário, torna-se evidente que a carga fiscal do próximo ano 2021 será substancialmente menor que a dos anos anteriores. Infelizmente, este decréscimo não vai ser motivado por nenhuma mudança estrutural no sistema fiscal, mas por uma redução drástica da atividade económica neste ano de 2020. No caminho da recuperação económica vamos precisar de cada cêntimo e as receitas fiscais são a fatia maior das receitas gerais do Estado (na União Europeia representam 89,2% do total de receitas dos governos nacionais e 41,1% do PIB da União ou 41,6% do PIB da Zona Euro) [2]. Ao longo de várias décadas, a tendência em Portugal não é a mais virtuosa:
- No plano da variação do crescimento real do PIB, verificamos que, desde 2001, apenas num ano (2017) crescemos acima dos 3%. E em três anos, o crescimento foi negativo (2003, 2009 e 2012) [3].
- No que respeita ao investimento (Formação Bruta de Capital Fixo), vemos que o valor de 2019 (18,2%) está abaixo de 1960 (20,8%). Aliás, está abaixo desse valor há dez anos [4].
- Quando falamos de rendimento bruto e poupança das famílias, chegamos à conclusão que é significativamente inferior a 1995 [5].
- No que toca à balança comercial, verificamos que volta a estar próxima do 0%, depois de valores positivos consecutivos desde 2012 [6].
- Finalmente, sobre corrupção, ainda ocupamos um 30º lugar no Índice de Perceção de Corrupção, tendo piorado no último ano, colocando-nos abaixo da média da Europa Ocidental e da União Europeia [7]. Mais: há estimativas, ainda que seja difícil quantificar, que apontam para perdes anuais na ordem dos 20 mil milhões de euros, o que é superior a 10% do nosso PIB.
Este cenário prova a complexidade do processo de recuperação e adaptação da nossa economia nacional. No que diz respeito, em concreto, à fiscalidade, indicia uma concentração das receitas fiscais. Ora, se o crescimento real da economia é de tal forma baixo nas últimas duas décadas (0,5% ao ano, em média aproximada) e se a carga fiscal tem vindo a aumentar significativamente, o que nos resta concluir é que são cada vez menos as famílias e as empresas que pagam impostos que, por sua vez, são cada vez mais altos.
Com efeito, Portugal está na média da carga fiscal da União Europeia, mas acima da média da OCDE [8]. O problema que se coloca vai além da dimensão da carga fiscal, mas compreende a forma como está distribuída. Ainda assim, importa desconstruir a ideia de que Portugal é fiscalmente competitivo porque tem uma carga fiscal em linha com os parceiros europeus. Não é assim, porque uma comparação genérica coloca no mesmo patamar realidades muito diferentes.
Se compararmos Portugal com países do sul da Europa, vemos que os portugueses pagam mais impostos que espanhóis, cipriotas ou malteses. Mais, comparando com países do Leste Europeu, temos uma carga fiscal superior a Hungria, República Checa, Polónia, Eslováquia, Estónia, Letónia, Lituânia, Bulgária ou Roménia. Para não referir a Irlanda, em que a realidade é completamente díspar. É com estes países que temos de nos comparar, no quadro de uma concorrência fiscal leal, transparente e saudável. E nessa comparação, perdemos.
Uma estratégia de recuperação económica e sobretudo de adaptação não pode ignorar a importância e mesmo a necessidade urgente de uma reforma fiscal que promova a competitividade económica por via de incentivos tributários.
Em primeiro lugar, temos de tornar o sistema menos complexo e mais eficaz e isso requer mudanças significativas nas regras fiscais, mas também em realidades paralelas, como o contencioso administrativo e tributário que ainda é demasiado moroso e dispendioso.
Em segundo lugar, tem de haver um mínimo de estabilidade fiscal e não multiplicarmos mudanças todos os anos, que requerem um esforço permanente de adaptação e mudança de prioridades de investimento da parte de muitas empresas.
Em terceiro lugar, temos de repensar seriamente o nível de fiscalidade, sobretudo nas empresas (IRC), que é significativamente superior ao dos países com que “concorremos” na captação de investimento estrangeiro.
Em quarto lugar, temos de refletir sobre a nossa base tributária, sobretudo em matéria de IRC mas, muito em concreto, do IVA, cuja lista de isenções e complexidade isentam metade (ou mais) dos sujeitos potencialmente passivos do imposto.
Em quinto lugar, temos de abordar a questão dos impostos sobre o trabalho, num cenário em que as empresas gastam, normalmente, o dobro do salário líquido auferido por um trabalhador. Aqui não estamos apenas a falar de libertar recursos para a tesouraria das empresas, mas a defender, efetivamente, o emprego. Se dúvidas houvesse sobre esta necessidade de rever a tributação do trabalho, os dados do Eurostat desta semana sobre o rendimento por hora dos trabalhadores europeus dissipam-nas: somos o segundo pior país, logo a seguir à Bulgária, ultrapassando por pouco os 5 euros de rendimento por hora (dados relativos a 2018 [9]).
Estas são apenas cinco pistas que, na verdade, constam já de índices internacionais que vão do Banco Mundial à Tax Foundation. O debate sobre a fiscalidade em Portugal e o papel para a captação de investimento e geração de riqueza não pode estar concentrado nas semanas de discussão das propostas de Orçamento do Estado, fortemente marcadas pela natural combatividade política. Como vetor estratégico de qualquer plano de recuperação, esta dimensão devia ser assumida como fundamental.
Estamos na reta final de um ano difícil e que mudou as nossas vidas. A Europa provou estar à altura do desafio, uniu-se e cooperou. Em 2021 vamos começar o caminho da recuperação e Portugal não pode ficar para trás, como tem acontecido nos últimos anos. Porque desta vez não ficaremos abaixo da média europeia, mas verdadeiramente na cauda da Europa. Não teremos uma segunda oportunidade.
[2] https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Tax_revenue_statistics#General_overview
[3] https://www.pordata.pt/Portugal/Taxa+de+crescimento+real+do+PIB-2298
[7] https://transparencia.pt/cpi2019/
[8] https://data.oecd.org/tax/tax-revenue.htm
[9] https://ec.europa.eu/eurostat/web/products-eurostat-news/-/ddn-20201214-2
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