O paradoxo do Euro
A Comissão Europeia ignorou a falta de legitimidade democrática do euro, condição essencial para ultrapassar os constrangimentos que afetam hoje a moeda única.
O Euro é um projeto político sem racionalidade económica e sem uma base democrática. Este paradoxo é um obstáculo para o bom funcionamento da UEM e para o próprio projeto de construção europeia. A Comissão Europeia optou por ignorar o problema mais importante no seu Livro Branco sobre o futuro da Europa, a sua falta de legitimidade.
O lançamento do Euro levou, nos anos 1990, à profusão de estudos económicos sobre os previsíveis efeitos da União Económica e Monetária (UEM). A visão que acabou por prevalecer referia que os benefícios do Euro seriam superiores aos custos. Os estudos que a suportavam eram, em parte, financiados pela própria Comissão Europeia.
Noutros casos, como Jeffrey Frankel e Andrew Rose, era mesmo referido que o próprio funcionamento da UEM iria automaticamente criar as condições para o sucesso do projeto ao levar os países a alinharem os seus ciclos económicos devido ao aumento das trocas comerciais.
Esta perspetiva excessivamente otimista não se concretizou, confirmando-se a falta de racionalidade económica do Euro que alguns economistas, maioritariamente anglo-saxónicos, previram. Mas as posições foram descredibilizadas com argumentos sobre a suposta intenção de se pretender defender a proeminência do Dólar ou da Libra contra a nova moeda. No caso de um deles, o economista inglês Bernard Connolly, o resultado da sua previsão pessimista foi o despedimento pela própria Comissão Europeia.
A base das posições críticas era a de que a UE não era uma Zona Monetária Ótima e que a sua economia não tinha flexibilidade como a dos Estados Unidos, ideia que se formou a partir do trabalho de Robert Mundell, prémio Nobel da Economia em 1999.
A razão principal para que o projecto do Euro pudesse ser mal sucedido era a possibilidade de ocorrência de choques assimétricos nas economias europeias, motivada pelas suas diferentes estruturas produtivas e graus de abertura ao exterior.
A política monetária harmonizada impossibilitaria não só uma resposta adequada a cada país dada a heterogeneidade e a falta de coordenação dos ciclos económicos, mas também dadas as diferentes necessidades macroeconómicas na resposta a estas crises assimétricas.
Para além disso, e ao contrário do que acontecia nos EUA, o ajustamento aos choques era dificultado pela menor flexibilidade de preços e salários, e pela fraca mobilidade dos trabalhadores na Europa, por barreiras culturais, legais e outras.
Daqui surgiu a aposta europeia na maior mobilidade dos trabalhadores europeus, mas sem nunca ser mencionado que essa mobilidade pode agravar as recessões económicas, como aconteceu em alguns estados dos EUA por diversas vezes.
Adicionalmente, os possíveis efeitos da UEM iam ainda para o perigo da atividade industrial se deslocar para o centro da Europa mais rica e com maior poder de compra, de forma a reduzir os custos de transação de bens e serviços. Para Portugal, este efeito teve custos muito grandes quando o investimento se passou a concentrar não no centro mas nos países do Leste Europeu.
O funcionamento da UEM era ainda prejudicado pela ausência de mecanismos orçamentais suficientes que compensassem os custos suportados pelos países menos desenvolvidos. A dimensão dos fundos europeus era, e ainda é, muito inferior às transferências automáticas para os estados em dificuldade previstas no caso norte-americano.
Inicialmente, tentou-se que os países europeus participantes na UEM tivessem o cuidado de capacitar as finanças públicas para responder a desafios inesperados. Daí a necessidade de estabelecer critérios onde assentasse a principal salvaguarda do funcionamento da UEM: limite de -3% do PIB no saldo orçamental e de 60% do PIB na dívida pública.
Mas esta solução não funcionou. Recorde-se que França e Alemanha foram os dois primeiros países a quebrar o limite acordado no saldo orçamental e que Portugal, desde o início do Euro, nunca cumpriu o seu compromisso de respeitar aquele limite. Parece que será finalmente agora, 17 anos depois do início do Euro, que isso vai suceder.
As crises de 2008 e 2010 mostraram que os choques assimétricos poderiam mesmo colocar em causa todo o projeto e influenciaram decisivamente a necessidade de se repensar o futuro da UEM. O desrespeito pelos compromissos assumidos leva a que a solução agora apontada se baseie no reforço da capacidade orçamental da UE para a implementação de um sistema de apoio e de partilha de risco.
Economistas aparentemente tão divergentes como Paul Krugman, laureado com o Nobel em 2008, e Jens Weidmann, presidente do Bundesbank, convergiram sobre a necessidade desta solução em recente passagem por Lisboa. Krugman, um dos céticos anglo-saxónicos que estudou os efeitos do Euro, defendeu que é necessária uma união orçamental que compense a insuficiente dimensão do orçamento europeu e complemente a política monetária. Weidmann foi mais realista ao afirmar que alguns países não aceitariam uma mera “união de transferências”, pelo que a solução passa pela implementação de um sistema de vigilância coletiva que garanta o cumprimento das regras da UEM.
Uma hipótese que já se levantou seria o Euro funcionar ao um nível muito restrito, assumindo definitivamente o que já é uma realidade, uma Europa com vários níveis de integração como o próprio Livro Branco veio reconhecer num dos cenários apresentados.
A implementação de uma solução é difícil dada a falta de legitimidade democrática das instituições europeias. A definição da política monetária não está sujeita a qualquer processo democrático. Pode argumentar-se que já não estava quando era definida a nível nacional, dada a independência que os bancos centrais tinham.
Mas este modelo não pode ser aplicado também à política orçamental, como parecem defender economistas e federalistas defensores de uma “união de transferências”. Uma união orçamental requer uma base democrática legítima porque não são aceitáveis decisões sobre a aplicação massiva e duradoura de dinheiros públicos sem o acordo dos eleitores.
A falta de legitimidade impede Bruxelas de ajudar a suportar os custos das crises de países que atravessem dificuldades e que apostem na boa vontade da Comissão Europeia para a sua resolução. A existência de uma união orçamental, com meios suficientes à sua disposição para responder a crises como as que ocorreram nos últimos anos está por isso muito limitada pela ausência desta legitimidade democrática.
Só a resolução deste problema possibilitará uma racionalidade económica que viabilize o futuro da UEM e ponha fim ao paradoxo do Euro. O Livro Branco da Comissão Europeia limitou-se a ignorar esta questão.
Diretor do Gabinete de Estudos do Ministério da Economia
Nota: As opiniões expressas no texto são da exclusiva responsabilidade do autor
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