O Presidente, o Império, a Madrugada
A História é mais forte do que o tempo. Este é o território de todos os racismos e de todas as discriminações. O Processo da Guerra Colonial continua por fazer.
O Presidente da República, que é um Filho do Império, fala aos Deputados da Nação que são Filhos da Madrugada. O Presidente pertence a uma geração entre dois tempos, sabe que a identidade democrática é uma convulsão sombria dos restos do Império e das promessas de Abril. O Presidente reconhece que não existem causas eternas nem visões absolutas. O Portugal Contemporâneo é um labirinto em que coexiste a memória com a culpa, o silêncio com a libertação. O Presidente sabe que o fantasma tem duas cores e usa uma colecção de fardas distintas.
Para os portugueses a Guerra das Colónias é uma série que viram na televisão enquanto mudavam de canal. A Guerra das Colónias não existe. A Guerra Colonial é uma foto dos postais ilustrados. A Guerra das Colónias é a memória de um tio meio desequilibrado, entre o álcool, cigarros e histórias de “turras” sentados a olhar as mãos cortadas. A Guerra Colonial é uma série de filmes a preto e branco granulado e engolida pela banalidade da distância e do tempo – “Adeus até ao meu regresso”. A Guerra das Colónias é o verde absurdo do mato onde as pernas rebentadas pelas minas caem no solo fértil da flora tropical e crescem até se tornarem árvores de grande porte. A Guerra Colonial é a ponta do iceberg chamado Império, mas que não deixa de afundar toda a esperança na construção de um Portugal sem complexos. A combinação do passado com o esquecimento é inquietante, pois dá origem a um falso futuro no meio de um Continente de nostalgia – Altas noites em Luanda guardadas em caixotes de madeira, despachados à pressa para Lisboa, adormecidos na correnteza do Cais.
A pretexto da Guerra Colonial, a discussão pública é invadida com declarações de ódio, seja a ideia da “morte ao homem branco”, seja a ideia da deportação de cidadãos portugueses com o slogan batido do “vai para a tua terra”. Parece que a discussão política se perde no túnel do tempo que começa em 1974 ou que acaba em 1961. Neste caso particular da Guerra, o que é extraordinário é que o País exibe uma paralisia cerebral aguda, uma incapacidade de se olhar no espelho e perceber que a Guerra do Ultramar existiu, que pertence à nossa História, seja pelo cortejo de morte e de sofrimento, seja pelas consequências políticas e sociais. Em Portugal existe uma vontade de não saber, uma ignorância escolhida, não a ignorância que acompanha a inocência. Os inocentes são sempre os primeiros a morrer.
Portugal está refém do Cais da Saudade, das baladas melancólicas dos que fugiram à tropa, dos que se recusaram a combater numa guerra injusta, opressora, fascista. Sobram aqueles que foram e que vieram, que viram o que não contam, que trouxeram dentro deles o cheiro da terra húmida de África, os gritos dos que fogem e dos que morrem bem impressos na memória e que voltam a morrer todos as noites na repetição dos sonhos. Esta gente incorpora a Guerra no coração da Democracia, como um acto fundador, como uma culpa eterna, com a saudade de quem sobreviveu ao Inferno mas que não se liberta do Inferno. Na Rua do Arsenal em Abril de 1974, os militares traziam dentro deles estas imagens do apocalipse projectadas nas paisagens sufocantes de África deslizando nas ruas estreitas e sombrias da Capital do Império.
Fala-se de Heróis e de Criminosos. Os Heróis para uns são os Criminosos para outros, não existe esse meridiano moral na lei da guerra. O que existe em Democracia é a obrigação moral de fazer o Processo da História, a obrigação cívica de absorver a complexidade da Verdade Histórica, pois para se perceber a natureza da besta é necessário estudar, identificar, aceitar a realidade de uma perspectiva histórica ainda presente no imaginário desconhecido do País. Esta ausência, este salto no tempo, estes náufragos do tempo e da História, são uma espécie de pecado original da Democracia em Portugal.
Depois há a rigidez das posições ideológicas mais ortodoxas. Para a Esquerda, o que vale é o mito da Revolução como a única forma de mudar o Mundo. A Guerra Colonial é o epicentro da Revolução, o crime político de um regime injusto e a prova definitiva da superioridade moral da Revolução. Para a Direita, o que vale é o mito da Guerra como a única forma de dominar o Mundo. A Revolução é o crime político de um outro regime injusto e a prova definitiva da superioridade moral da Guerra. Entre a Revolução e a Guerra, entre a Democracia e o Colonialismo, entre a mitologia dos “movimentos de libertação” e a mitologia do “fardo do homem branco”, entre o “nascimento das novas nações” e a “metrópole colonial”, Portugal fica amputado de uma parcela da sua identidade.
Actualmente, na época das grandes migrações, quando passou o tempo em que era possível exportar Governos, estabelece-se a norma de importar Novos Impérios entre fronteiras. Comunidades com um passado comum, mas sem uma filiação comum. A História é mais forte do que o tempo. Este é o território de todos os racismos e de todas as discriminações. O Processo da Guerra Colonial continua por fazer. No céu imaginário ainda circulam os helicópteros em missões de combate contornando as colunas de fumo negro que se libertam das aldeias africanas. Os helicópteros estão manchados de sangue, cheiram a metal, a medo, a morte. Uma sombra na Democracia.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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