O problema da habitação
A habitação entrou na agenda política e tem motivado várias iniciativas legislativas. Mas em que consiste o problema da habitação?
A propósito do debate das propinas, escrevia Luís Aguiar-Conraria “o que surpreende nas declarações do ministro do Ensino Superior é a total incapacidade de identificar qual o problema que se pretende solucionar”. Surpresa?! Nenhuma. Infelizmente, não é exclusivo da discussão sobre as propinas, é mesmo o modo normal de fazer política pública em Portugal. Surpreendente seria termos um problema bem definido e devidamente quantificado, com recurso a dados estatísticos.
Veja-se o caso paradigmático da habitação. O tema entrou na agenda política e tem motivado várias iniciativas legislativas cujo propósito é resolver o problema da habitação. Mas em que consiste o problema da habitação? A resposta a esta pergunta costuma envolver a referência à subida do preço das casas.
O índice do preço da habitação, que em 2013 era de 93,09, passou para os 117,02 em 2017, uma subida de quase 26%. Claro que esses 93,09 de 2013 representavam uma descida de 13% face a 2008, motivada pela crise económica. Nessa época, o que muitos diriam ser o problema da habitação chamava-se incumprimento: em 2013, quando os empréstimos à habitação valiam praticamente 70% do PIB, mais de 6% das famílias que haviam contraído um crédito à habitação tinham prestações vencidas.
Segundo os últimos Censos, somos um país de proprietários, já que 73% dos agregados familiares portugueses eram donos da habitação onde residiam. E, portanto, o facto de as casas terem ficado mais caras significa que muitas famílias passaram a ter um activo que agora vale mais. Ou seja, a subida do preço no mercado imobiliário, por si só, não determina um problema de habitação.
Obviamente, todos estes números escondem enormes disparidades regionais.
Por exemplo, o preço mediano do metro quadrado vendido no concelho de Lisboa cresceu 46,8% entre o primeiro trimestre de 2016 e o segundo de 2018, quando atingiu os 2.753 euros, mais do dobro dos 1.305 da respectiva área metropolitana, quase o triplo dos 969 euros da média nacional, quatro vezes e meia os 603 de Castelo Branco.
Mas em Lisboa, de acordo com os Censos, só 52% da população vivia em casa própria (embora com grandes diferenças entre freguesias: menos de 12% na do Castelo, mais de 70% no Lumiar), sendo quase 99 mil as residências habituais arrendadas (30% delas com contratos celebrados antes de 1975). A evolução destes números desde 2011 não é dado que conheçamos. O INE diz-nos que, em 2017, assinaram-se mais 84 mil contratos de arrendamento em Portugal, 28 mil dos quais na Área Metropolitana de Lisboa, contudo a série (por enquanto) começa e acaba nesse ano. E o mesmo sucede com o valor mediano do metro quadrado no arrendamento.
“O Projeto de Lei de Bases da Habitação que o PCP apresenta, pretende constituir uma resposta para os graves, e mesmo nalgumas situações muito graves, problemas de Habitação”, assim se lê na exposição de motivos do Projecto de Lei n.º 1023/XIII/4.ª. Uma definição clara e rigorosamente quantificada daquilo em que consiste esse problema é que não encontramos. É afirmado que os actuais processos de revitalização urbana foram “centrados na reversão do arrendamento e conducentes à expulsão de milhares de famílias e de micro e pequenas empresas dos centros das grandes cidades” e é tudo.
Bom, sendo um projecto para uma lei de bases, ou seja, para uma lei de carácter estrutural, até posso compreender que o seu preâmbulo não inclua uma caracterização do que são aspectos conjunturais. Mas se vamos estar nas próximas semanas a discutir esta e outras propostas para estabelecer um conjunto de princípios orientadores da legislação e da actuação das políticas públicas em matéria de habitação, talvez valha a pena começar por reflectir seriamente sobre de que forma não está o direito 65.º da Constituição a ser respeitado.
Os dados respeitantes ao Balcão Único de Arrendamento ‒ facultados ao Diário de Notícias pelo Ministério da Justiça, que, segundo me consta, não os publica ‒ mostram que, em 2015, foram 4.590 os requerimentos de despejo e que, em 2016, se concretizaram 1.930 deles; em cinco anos e três meses, entraram 21.932 pedidos de despejo, dos quais foram atendidos 8.529. Números que não destoam daqueles que a Direcção-Geral de Política da Justiça divulga para as acções anteriormente postas em tribunal: por exemplo, em 2003 ou em 2004, foram decididos mais de 7.000 despejos, a esmagadora maioria (acima dos 90%) por não pagamento de rendas.
Que aconteceu às famílias despejadas ou cujos contratos de arrendamento não se renovaram (era bom que ficasse, de uma vez por todas, assente que são conceitos distintos)? Deixaram de ter um tecto sob o qual morar? Ou mudaram-se para uma casa que não lhes agrada? E não lhes agrada a casa em si ‒ porque é pequena, porque lhe falta condições de habitabilidade, porque não gostam dos acabamentos ‒ ou a localização? E se é a localização que desagrada, a que se deve tal? Ao tempo que se vai perder nas deslocações para o trabalho, ao mau urbanismo da zona, à ausência de bons serviços (escolas, centros de saúde, etc.) nas redondezas, à falta de segurança, ao rompimento de laços de vizinhança?
Que aconteceu às 738 casas (10% do parque habitacional) que, em Cinfães, em 2011, não tinham instalação de banho ou duche? É que o direito inscrito na Constituição não é a uma morada, mas sim a uma habitação com condições de higiene e conforto. Portanto, quantas são as casas que não cumprem este requisito? Quando a relatora especial da ONU, Leilani Farha, esteve em Portugal a averiguar o respeito pelo direito à habitação, foi isso mesmo que notou, que havia gente a viver em condições deploráveis.
E numa população que, apesar do anúncio optimista sobre terem nascido mais bebés em 2018 que no ano anterior, continua a envelhecer, quantos são os idosos que moram em casas não preparadas para a sua condição de velhice?
São muitas questões ‒ e estou certa de me ter esquecido de muitas outras ‒ que necessitam de respostas. E diferentes respostas exigirão diferentes actuações dos poderes públicos. Sem elas, não saberemos de que falamos quando falamos do problema da habitação. E não se pode resolver um problema que não se sabe qual é.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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