Os tiques fascistas estão em todo o lado
Os discursos bonitos sobre a diversidade parlamentar são apenas isso mesmo. À primeira ocasião, 190 mil eleitores são silenciados com a “lei da rolha” imposta aos deputados que elegeram.
Se quiserem, PS, Bloco de Esquerda, PCP e Os Verdes têm ainda três dias para reverter uma decisão inacreditável que tomaram na sexta-feira no Parlamento. O silenciamento que os partidos de esquerda decidiram impôr aos três novos partidos parlamentares para o debate quinzenal com o primeiro-ministro, marcado para quarta-feira, é tão incompreensível quanto reveladora.
É incompreensível porque os mesmos partidos tiveram, há quatro anos, a única atitude que se espera de gente sensata eleita pelo povo para a dita casa da democracia. Chegado ao Parlamento um novo partido representado por apenas um deputado, arranjaram forma de abrir uma excepção nas regras em vigor para que André Silva, do PAN, dispusesse também de algum tempo para a suas intervenções nos debates quinzenais e interpelações ao governo – que são os debates regulares mais mediatizados.
Tudo se passou sem sobressaltos, sem polémicas e até sem que o país tenha dado conta da decisão, como acontece quando se tomam atitudes naturalmente sensatas. Ora, o regimento parlamentar que há quatro anos foi ultrapassado – e bem – é agora invocado por esses partidos como o motivo do bloqueio que está a ser feito aos deputados únicos do Livre, Iniciativa Liberal e Chega.
Esta linha tem vários problemas.
O primeiro é que deve ser o regimento parlamentar a servir a democracia e as suas boas práticas, não devem ser estas a sofrer entorses graves para se adaptarem àquele. Se as regras em vigor no Parlamento não estão adaptadas a essa coisa aborrecida que é o voto e a vontade dos eleitores e se a burocracia é mais lenta do que a realidade, são as regras e a burocracia que estão mal e não os resultados eleitorais e o seu reflexo parlamentar.
O segundo, carregado de hipocrisia, é que o apego inflexível às regras parlamentares tem dias e horas. Não se viu este nem outro rigor na aplicação das regras para as moradas falsas de deputados em busca do subsídio, para a marcação de presenças falsas ou para o duplo subsídio dos contribuintes que alguns recebiam pelas viagens para as ilhas.
Quando estes casos foram conhecidos, coisa que aconteceu com frequência nos últimos anos, reinou um silêncio cúmplice nas bancadas ou a tentativa de justificar a violação das regras, incluindo dos partidos que agora querem fingir ser mais rigorosos do que um relógio suíço.
Ah, a preocupação é com a gestão do tempo nos trabalhos parlamentares? Também não parece uma boa justificação para quem constitui comissões por um prazo de 180 dias e 1000 dias depois ainda não tinha aprovado nenhuma proposta de diploma. Falamos da dita Comissão para a Transparência.
Sem coragem para assumir as verdadeiras motivações, esta atitude revela vários tiques, cada um pior do que o outro.
O primeiro é o desprezo pela vontade dos eleitores. Os discursos bonitos sobre a diversidade crescente na representação parlamentar são apenas isso mesmo: discursos e bonitos. À primeira ocasião, cerca de 190 mil eleitores são silenciados através da “lei da rolha” imposta aos deputados que elegeram.
É importante recordar que a legitimidade democrática de Joacine Katar Moreira, João Cotrim de Figueiredo ou André Ventura é rigorosamente igual à legitimidade de cada um dos 139 deputados do PS, BE, PCP ou Verdes. Nem mais nem menos.
Depois, é a confirmação do corporativismo dos já instalados. A concorrência só é boa quando é para os outros. Os que estão comportam-se como “donos disto tudo” e, provavelmente, nem se dão conta disso.
Se estão distraídos, que ouçam, pelo menos, o que Ferro Rodrigues tem para lhes dizer sobre esta atitude: é “um grande erro” na “análise política desta nova situação democrática”.
Não se entende o que se passa naquelas cabeças na tomada da decisão. Inclinar o terreno de jogo para tornar mais difícil a vida aos pequenos adversários? Mas as ideias combatem-se com debate e contraditório, mostrando que são más ou piores do que as nossas. É um disparate querer combatê-las tentando silenciá-las.
No caso do Livre trata-se das habituais divisões à esquerda, a maior parte das vezes mais violentas e radicais do que as que a opõem à direita?
São os ataques ao modelo socialista que a Iniciativa Liberal faz de prato principal nas suas intervenções?
Ou é o incómodo com a chegada ao Parlamento do primeiro deputado da direita radical e xenófoba?
Se o problema é sobretudo com André Ventura a atitude é um erro de palmatória. Primeiro, porque na era das redes sociais a mensagem chega de múltiplas formas aos eleitores e de forma mais eficaz do que através dos debates parlamentares. Depois, porque o pior que se pode dar a populistas é legítimo capital de queixa para alimentar o discurso contra “o sistema”.
Mas pior do que isso é tentar combater ameaças potencialmente fascistas com atitudes que são, elas mesmas, fascistas. Com uma diferença. O Chega ainda é só uma ameaça mas esta decisão é bem real.
Vamos esperar que, depois de reflectirem, os partidos em causa ganhem algum bom senso e recuem nesta decisão. Têm até à manhã de quarta-feira para o fazer, em nome da democracia.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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