Quantos ficaram para trás?

A OCDE concluía que, em Portugal, uma família de baixos rendimentos podia demorar 5 gerações a atingir os rendimentos médios. Não há uma democracia saudável sem um elevador social funcional.

Sou bolseiro desde 2019. Na altura tinha 15 anos e candidatei-me a uma bolsa social e de mérito da Fundação Belmiro de Azevedo. Foi essa bolsa que me permitiu estudar no Colégio Efanor durante o meu ensino secundário e posso garantir que se não fosse essa oportunidade, hoje não estaria a escrever aqui.

Ainda faço parte daquela escola que acredita no mérito e que cada um de nós consegue, através do seu esforço e dedicação, superar-se a si e àqueles que partem de igual. Desenganem-se aqueles que acham que o mérito é sinónimo do sucesso em absoluto ou uma função com uma única variável, controlada por nós. É, na verdade, uma combinação de fatores como a sorte, o infortúnio, o ponto de partida e, naturalmente, também, o esforço e a dedicação.

Com isto quero dizer que é inegável que o nosso contexto socioeconómico, familiar e escolar tem impacto direto e contundente no nosso sucesso, nas mais variadas ordens. Assim, o mérito é, simplificadamente, uma distância. A distância que percorremos entre a nossa origem e os nossos resultados.

Nunca como hoje houve tantos jovens a licenciarem-se em Portugal. Nunca como hoje houve tão pouco abandono escolar. Dentro dos jovens adultos (25 a 34 anos), já temos mais licenciados que a média da UE (48% face a 41%), mas a desigualdade que estes números ainda escondem é algo perturbadora.

Em 2019, um estudo da Edulog concluiu que os jovens com pais não licenciados estavam sub-representados no ensino superior, representando 78% do total dos jovens, mas apenas 61% dos novos inscritos. A discrepância é tal que na U. Nova Lisboa a percentagem de estudantes com a mãe licenciada é de 75%, enquanto na U. Beira Interior é de apenas 20%. Quando olhamos por instituição de Ensino, percebemos que as quatro com menor percentagem de bolseiros se localizam na cidade mais populosa, mais cara e, talvez, mais desigual do país, a saber: U. Nova Lisboa, ISCTE, U. Lisboa e IP Lisboa, por ordem crescente. A cidade com mais vagas é também aquela com menor número relativo de bolseiros.

As desigualdades, para além de regionais — o que disse de Lisboa também se aplica a uma escala menor ao Porto –, são, também, no acesso a certos cursos, ou porque são mais prestigiantes socialmente, ou porque têm um maior retorno. A percentagem de alunos com pais licenciados é aproximadamente metade no ensino politécnico do que é no universitário. Mais grave, enquanto em enfermagem há 40% de bolseiros, em medicina há apenas 15%. Enquanto em solicitadoria há 50% de bolseiros, em direito são apenas 28%. Há cada vez mais licenciados, mas é interessante olhar para as oportunidades dos mais pobres ou dos primeiros a licenciarem-se nas suas famílias.

Para além disto, muita gente se pergunta qual a relevância dos rankings das escolas. Para mim é muito evidente. Ano após ano vemos mais escolas privadas no top 50, em 2023 eram 44. O interesse está em olhar para os dados crus, como puros agregadores das médias nos exames nacionais. Com um sistema de acesso com um peso tão grande das notas dos exames (bem, a meu ver), é evidente a vantagem com que os alunos provenientes destes colégios apresentam no acesso ao ensino superior. Estes rankings não nos ordenam as melhores escolas, mas aquelas que melhor colocam os seus alunos e isso, só por si, tem imenso valor.

Este é o retrato de um país dividido, um país que não se conhece mutuamente. Hoje, Portugal apresenta dois sistemas de ensino, o dos que podem pagar o ensino privado e o dos que não podem. Hoje, Portugal apresenta uns cursos e instituições para os filhos da elite e outros para os filhos do povo. A interseção é estreita.

A escola devia funcionar como harmonizador, mas não o é quando estes dois blocos não se cruzam. Quantos são aqueles da nossa elite política e mediática que conhecem o funcionamento de uma escola pública, na ótica do utilizador? Creio que poucos e isso é função do poder negocial e da relevância deste tema.

Em 2018, a OCDE concluía que, em Portugal, uma família de baixos rendimentos podia demorar 5 gerações a atingir os rendimentos médios. Como é que estes números não nos colocam a discutir estas questões? Não sei. Sei apenas que não há uma democracia saudável sem um elevador social funcional e o nosso já precisava de uma revisão.

Hoje, para além da Fundação Belmiro de Azevedo e da DGES, sou bolseiro da Fundação Gulbenkian. As portas que estas bolsas me abriram foram preponderantes para o meu desenvolvimento, talvez até para estudar na instituição onde estudo. Nesta mistura de mérito com contingências felizes, fui bafejado. Nunca saberei onde estaria hoje sem estas oportunidades, mas às vezes pergunto-me quantos ficaram para trás, quantas vidas vão ficar por concretizar. Para os mais numéricos questiono: Qual é o custo disso para o país?

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Quantos ficaram para trás?

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião