Não bastam contas certas, é preciso a ética certa
A queda do Governo devido a um escândalo de corrupção mancha a reputação do país, põe em risco investimentos decisivos, mina o capital junto da União Europeia e chega na pior altura possível.
A reputação do país
Portugal, o bom aluno da União Europeia, que nos últimos anos exibiu um crescimento surpreendente, acima do conjunto do bloco, e vem apresentando um desempenho orçamental ao alcance de poucos, vê agora a sua reputação manchada por um caso de justiça com epicentro no âmago do Governo e que dita a sua inevitável queda.
“Maioria absoluta não é poder absoluto”, disse várias vezes António Costa. Foi, no entanto, a soberba de quem acha que tudo pode que levou aos atropelos cometidos pelos arguidos da Operação Influencer, indiciados por crimes de prevaricação, tráfico de influência e corrupção.
Entre os arguidos está o chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vítor Escária (já exonerado), o ainda ministro das Infraestruturas, João Galamba (que há seis meses Costa segurou contra a vontade de Marcelo) e Diogo Lacerda Machado, para quem o título de “melhor amigo” do chefe do Governo alegadamente se tornou uma fonte de rendimento, e o presidente da Câmara de Sines.
A existência ou não de corrupção é um indicador seguido pelas grandes empresas e financiadores quando avaliam o risco dos investimentos. Até porque não querem eles próprios ver a sua reputação afetada. A perceção que existe sobre Portugal piorou. No início do mês, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça afirmava numa entrevista ao jornal Nascer do Sol que “a corrupção está instalada em Portugal”. São necessários ainda mais meios para a combater.
Investimentos estruturantes em risco
O Governo caiu devido a alegados crimes de corrupção que envolvem projetos de extração de lítio e produção de hidrogénio verde. Foi assim que também lá fora foi noticiada a inesperada demissão de António Costa.
O facto de o alegado tráfico de influências, corrupção e prevaricação terem envolvido grandes projetos e investimentos em áreas tão decisivas para o futuro da economia portuguesa é particularmente grave. O anátema pode comprometer os projetos ou, na melhor das hipóteses, atrasá-los.
Na mira do Ministério Público (MP) estão dois projetos de exploração de lítio. Um da Lusorecursos, em Montalegre, com um investimento previsto de 650 milhões de euros. O segundo é da Savannah Resources, em Boticas. A empresa australiana participa ainda num consórcio liderado pela Galp, uma das agendas mobilizadoras no âmbito do PRR, que prevê um investimento de 914,8 milhões numa “operação mineira sustentável” e uma refinaria de lítio com produção suficiente para 1 milhão de veículos elétricos.
A Savannah foi alvo de buscas pelo MP. Diz que não é visada na investigação e que o projeto continua. Mas há quem tema consequências para a sua viabilidade: as ações tombaram 26% desde que foram conhecidas as investigações e anunciada a demissão do Governo.
As duas minas de lítio receberam luz verde da Agência Portuguesa do Ambiente, que agora está em risco caso se conclua que foi obtida de forma ilegal. As associações ambientais já vieram exigir o cancelamento dos projetos.
As suspeitas do MP estendem-se também a um projeto de hidrogénio verde, o H2Sines, que envolve a EDP, Galp, REN, Martifer e a espanhola Vestas. Um investimento de 1,5 mil milhões de euros selecionado pelo Governo para a candidatura ao estatuto de Projetos Importantes de Interesse Comum Europeu. Galp e EDP decidiram, entretanto, sair do consórcio e criar um novo, o GreenH2Atlantic, com um investimento inicial de 150 milhões, apoiado em 30 milhões pelo Horizonte 2020 da União Europeia. Não há indicação de que esteja na mira da justiça.
O caso em que, para já, são arguidos os oitos suspeitos diz respeito apenas à construção de um gigante centro de dados em Sines, um investimento envolvendo a Davidson Kempner e a Pioneer Pilot Partners, que poderia chegar aos 3,5 mil milhões de euros. Os administradores do Start Campus terão alegadamente corrompido membros do Governo e estes outros atores para conseguir autorizações ambientais e despachos governamentais à medida. A empresa diz que quer manter o investimento, mas a incerteza é agora enorme.
Só nestes projetos estão envolvidos mais de 5,2 mil milhões de euros, o equivalente a 2,1% do PIB. Além do investimento estar ameaçado, Portugal corre o risco de perder o comboio em várias áreas que serão estruturantes para o crescimento económico no futuro.
A relevância política na Europa
Goste-se ou não de António Costa e das suas políticas, é indesmentível que o primeiro-ministro português gozava de grande prestígio na Europa. O que lhe conferia a ele e ao país uma capacidade de influência que de outra forma não teria.
No poder desde 2015, era um dos dois socialistas na Europa que governavam em maioria absoluta, sendo o outro Robert Abela, de Malta. Como sublinha o El País, António Costa era uma referência da esquerda europeia. Recebido primeiro com receio, devido à aliança com a extrema esquerda, construiu uma imagem de respeito graças à sua capacidade de diálogo internacional e às contas certas.
Este capital do país junto dos principais líderes europeus desaparece. Terá de ser novamente construído por um sucessor, mas levará tempo. A ambicionada carreira do líder do PS nas altas instâncias da UE parece bem mais distante, mas os anúncios de morte política são muitas vezes exagerados.
Instabilidade na pior altura
A crise política chega em péssima altura, com a economia a fraquejar. O turismo tem menor margem para crescer e deixou de ser o motor que foi nos últimos anos, as exportações estão em queda e as altas taxas de juro vão apertando os orçamentos de empresas e famílias.
Às dificuldades internas, soma-se um quadro externo de crescente incerteza, com um conflito na Europa e outro no Médio Oriente. A inflação continua por debelar completamente e os riscos para a instabilidade financeiras estão a crescer.
A estabilidade política ajudaria a navegar melhor através da turbulência. A viabilização do Orçamento do Estado para 2024, que o Presidente da República vai permitir ao adiar a demissão formal do Governo, dá uma ajuda.
Só que o risco de não sair das eleições de 10 de março uma solução de governação sólida e duradoura é alto. As sondagens vão apontando para uma crescente fragmentação do voto, cenário em que nem o PS nem o PSD conseguirão assegurar sozinhos a estabilidade.
Oportunidade de mudança
É necessária uma rutura com o passado. É a segunda vez que a governação socialista se vê enredada num escândalo de corrupção. O PS tem de apresentar outros protagonistas e uma entourage que não seja herdeira do mesmo modo serôdio de fazer política.
Para o PSD, se chegar ao poder, é a oportunidade de marcar a diferença através de uma gestão mais transparente e responsável dos assuntos do Estado. Saberá agarrá-la?
A corrupção passa uma enorme fatura económica e social. O país precisa de outra cultura política. Não bastam as contas certas, é necessária a ética certa.
A corrupção é um cancro: um cancro que mina a fé dos cidadãos na democracia; reduz o instinto para a inovação e a criatividade; desperdiça o talento de gerações inteiras; afasta o investimento e postos de trabalho; mina a força coletiva e a determinação de uma nação. A corrupção é apenas mais uma forma de tirania.
Nota: Este texto faz parte da newsletter Semanada, enviada para os subscritores à sexta-feira, assinada por André Veríssimo. Há muito mais para ler. Pode subscrever a Semanada neste link.
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