
Sacrossantismos e messianismos políticos
O sacrossantismo e o messianismo político são ferramentas poderosas que foram (e podem ser) utilizadas para consolidar poder e justificar regimes autoritários.
“Those that fail to learn from history are doomed to repeat it.”
Winston Churchill
1. Como os conceitos são flutuantes, no sentido de evoluírem e se transformarem com o desenvolvimento do pensamento e da sociedade, é sempre aconselhável ter em mente o contexto e o tempo a que se referem.
Tanto o sacrossantismo, como o messianismo político não são epifenómenos recentes. Pelo contrário. Atravessaram a história, moldando-a. Quer através da modelação do pensamento filosófico e ideológico, quer pela materialização em diversos e distintos regimes. O principal efeito é a sacralização (e a consequente imposição) de determinados valores, líderes e instituições, dotando-os de um carácter absoluto e incontestável, e de uma dimensão extraterrena.
Pode ser feita uma distinção entre ambos estes ismos, considerando que o sacrossantismo se refere à dimensão da simbologia ideológica, enquanto o messianismo alude à crença ou, se preferirem, ao culto num líder redentor que conduzirá a uma sociedade a um futuro pré-idealizado.
A crença, culto e veneração de líderes como pessoas com dimensão divinal e espiritual não é novo e vê-se ao longo da história. Será suficiente lembrar as culturas suméria, hitita, babilónica, chinesa e japonesa, Saliento, por exemplo, as culturas egípcia e romana. Os faraós foram considerados intermediários entre os deuses e os homens; e os imperadores romanos foram frequentemente endeusados, sendo que alguns, como Augusto, usaram essa sacralização para consolidar o poder. Já durante a Idade Média, estando o poder político umbilicalmente ligado à religião, a ideia do direito divino legitimava monarcas. Todos estes cultos justificaram a autoridade absoluta.
2. Fruto de eventuais reinterpretações, estas ideias, embora adaptadas, podem ser vistas no século XX, no comunismo e no nazismo que, não obstante uma rejeição formal da religião tradicional e apesar de aparentarem ser regimes seculares e materialistas, propagaram os seus próprios dogmas e cultos, enaltecendo alguns homens, valores, símbolos e ideias como intocáveis e sacrossantos.
Alicerçado nas ideias de Karl Marx, o comunismo estabeleceu vários dogmas que foram posteriormente sacralizados nos regimes ditatoriais revolucionários:
- Classe operária: O proletariado, colectivamente elevado à condição de princípio absoluto, era a força motriz da história, a base de toda moral e verdade, e o único elemento social com legitimidade para transformar a sociedade;
- Partido Comunista: Como “vanguarda” do proletariado, o partido detinha um papel quase divino na condução da revolução. A sua liderança era infalível e qualquer discordância interna era um sacrilégio;
- O Estado proletário: Durante a transição para o comunismo pleno, o Estado socialista assumiu um papel absoluto, concentrando o poder de forma incontestável. Teoricamente devia caminhar para o desaparecimento. Na prática, tornou-se intocável e transformou-se no Estado do partido comunista;
- Marx, Lenin, Stalin (Mao, Castro): Como principais teóricos e líderes comunistas foram tratados como figuras proféticas, cujas imagens e palavras se tornaram omnipresentes na vida quotidiana dos cidadãos;
- Materialismo dialético: Dogma filosófico inquestionável:
- Materialismo histórico: Ciência superior a qualquer outra teoria, cujo questionamento era visto como uma traição.
- História oficial: A narrativa comunista trata a revolução, a luta contra o capitalismo e os mártires da causa como eventos sagrados, reinterpretando fatos históricos para atender aos interesses da ideologia.
Por sua vez, baseado nos escritos de Adolf Hitler, o nazismo também instituiu um sistema de veneração ideológica centrado na raça, no Estado e no seu líder, Hitler. Alguns dos principais dogmas foram:
- Raça Ariana: Considerada pura e superior foi tratada quase como um princípio espiritual, cuja preservação é missão essencial (base das políticas de genocídio contra “elementos degenerados”);
- Estado Nacional-socialista: Encarnava o “espírito do povo alemão” (volksgeist), sendo absoluto e infalível, e severamente reprimidas quaisquer formas de contestação;
- Führer: O culto à personalidade de Hitler atingiu dimensão messiânica, sendo a sua imagem, discursos e textos considerados sagrados (o juramento de lealdade ao Führer era pessoal e inquestionável);
- Sangue e Solo (Blut und Boden): A ideologia nacional-socialista sacralizou o elo do povo ariano à terra promovendo a ideia de uma comunidade racialmente pura e territorialmente enraizada;
- Simbologia reverencial: Elementos como a suástica, a saudação nazista e as cores do partido eram usados com uma adoração quase religiosa.
- Volksgemeinschaft “comunidade do Povo”: O nazismo visionava uma sociedade unificada, homogénea e virtuosa racialmente, da qual eram excluídos todos os grupo “indesejáveis”.
Sumarizei estas ideias nas tabelas 1 (elementos sacrossantos) e 2 (elementos ideológicos).
Ao analisar o comunismo e o nazismo, Hannah Arendt (The Origins of Totalitarianism, 1951) disse que ambos compartilharam características: a destruição da individualidade, o uso do terror como ferramenta de controle e a criação de uma realidade paralela baseada em dogmas ideológicos. Assim, para ela, ao procurar eliminar a espontaneidade humana e transformar a sociedade numa massa homogénea e manipulável, o totalitarismo foi mais do que um regime autoritário.
Por sua vez, Bertrand Russel (Sceptical Essays, 1928; Power: A New Social Analysis, 1938), argumentou que o comunismo e o nazismo ao substituir a razão pelo dogma, valorizaram a obediência cega em detrimento do pensamento crítico. Russell, alertando para os perigos decorrentes da transformação de qualquer ideologia em absoluta e incontestável, disse que a liberdade intelectual era essencial para se evitar a armadilha do fanatismo.
Finalmente, Nikolai Berdyaev (The Origin of Russian Communism, 1937), defendeu que o comunismo e o nazismo criaram suas próprias formas de sacralização revestindo partido, líder e ideologia com um manto de divindade. Segundo Berdyaev, como essa transformação originou um sistema rígido e desumanizado que eliminou a dimensão espiritual da humanidade era perigosa e indesejável.
Mas não pensem que os exemplos de políticos (da esquerda e da direita) que usaram cultos de personalidade para se manter no poder ficam por aqui: Ferdinand Marcos (Filipinas), Gurbanguly Berdimuhammedow (Turquemenistão), Kim Jong-un (Coreia do Norte). Juan Perón (Argentina), Rafael Trujillo (República Dominicana), François Duvalier (Haiti), Recep Erdoğan (Turquia), Hugo Chávez (Venezuela), Vladimir Putin (Rússia).
Mais recentemente assistimos a uma nova vaga de populismos. À esquerda temos movimentos radicais que atacam as políticas sociais dos partidos do centro. E fazem-no através de braços armados disfarçados como activismo. Fridays for Future, Black Lives Matter e até Green New Deal e o movimento Sunrise nos EUA, servem de exemplo (em Portugal, o Climaximo). Apesar duma nova roupagem comunicacional, adaptada aos novos tempos. as velhas ideias estão lá todas: luta de classes, desigualdade e a injustiça social, racismo, discriminação, fim do capitalismo, etc.
À direita a mensagem também foi actualizada. Vemos movimentos e partidos, que afirmam ser a voz do povo, usar um discurso anti establishment para acusar os partidos tradicionais e as multinacionais pelas políticas de globalização, de imigração e pela crise económica. Defendem o reforço da soberania nacional, a restrição imigratória e a diminuição parcial da liberdade. Marine Le Pen, Nigel Farage, George Simion, Viktor Orbán, Donald Trump e André Ventura ilustram esta realidade. E também aqui vemos as velhas ideias: nacionalismo, proteccionismo, autoritarismo, xenofobia, controlo estatal da economia, etc.
Qual é o ponto comum ao que descrevi?
A construção dos cultos da personalidade e dos regimes sacralizados requer a utilização de narrativas baseadas na mentira, deturpação, ilusão, insinuação, etc., que, ao evocarem os bons tempos do passado e soluções fáceis, são apelativas e atractivas.
Hoje, como ontem, o sacrossantismo e o messianismo político são ferramentas poderosas que foram (e podem ser) utilizadas para consolidar poder e justificar regimes autoritários. E as vítimas acabam por ser sempre as mesmas: A liberdade, a verdade e a democracia.
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