Salvar a Europa (do manifesto de Piketty)!
O título (“Salvar a Europa de si própria”) é pujante, mas depois de lido o texto, a pujança dá lugar à pungência.
A febre dos grandiosos manifestos políticos voltou a atacar. Desta feita, os signatários da iniciativa propõem-se “Salvar a Europa de si própria”. O manifesto foi publicado na passada 2ª feira, em vários jornais europeus, pelo célebre economista Thomas Piketty e entre os seus signatários conta-se pelo menos um português: Pedro Bacelar de Vasconcelos. O título (“Salvar a Europa de si própria”) é pujante, mas depois de lido o texto – eu li a versão disponível no The Guardian – a pujança dá lugar à pungência. E se alguém tem de salvar alguém, é a Europa que tem de se salvar deste manifesto e não o contrário.
A proposta de Piketty e companhia tem duas vertentes. A primeira é política. A segunda é orçamental. A primeira promete centralização e a segunda progressividade. A agenda que perpassa o manifesto é uma agenda de desenvolvimento social que os signatários entendem faltar à Europa. Por outras palavras, os signatários pretendem reforçar a justiça social do projecto europeu. Para tal, propõem uma nova assembleia europeia que seria constituída na sua maioria (80%) por deputados eleitos nas legislativas de cada país e de forma minoritária (20%) pelos deputados europeus eleitos nas europeias propriamente ditas. Desta forma, as eleições nacionais transformar-se-iam, de facto, em eleições europeias, eliminando a divisão entre política local e transacional que, frequentemente, constitui um pretexto para a desculpabilização e desresponsabilização dos políticos locais. A nova assembleia europeia seria dotada de um orçamento próprio equivalente a 4% do PIB da União Europeia – cerca de 4 vezes o orçamento actual.
Ora, quando analisamos este tipo de manifesto, é sempre importante distinguir entre os propósitos abstractos e as propostas metodológicas. Por outras palavras, não pretendo diminuir nem pretendo desvalorizar a genuína preocupação (e consternação) que alguns signatários parecem sentir com o actual estado de coisas na Europa. O ponto não é esse. O ponto deste artigo é outro; é a minha convicção de que o caminho proposto pelos signatários, em vez de desagravar o problema, apenas contribuiria para o agravar.
Primeiro, a questão da centralização política. Sobre isto, numa altura em que cada vez mais se questiona a centralização de poderes nas instituições europeias, não consigo compreender como é que uma maior concentração de poder em Bruxelas poderá contribuir para a legitimação do mesmo. O mecanismo electivo proposto, que procura transferir a representatividade do palco nacional para o palco transnacional, é apenas um simulacro de representatividade e levaria à perda de eficácia da acção política dos eleitos.
Como poderiam os deputados tratar de assuntos locais e transnacionais ao mesmo tempo? Acabariam por não tratar nem de uns nem de outros; a desresponsabilização seria total. Os signatários falam de “co-governança”, como forma de articular os interesses locais e os da união. Porém, parece-me uma abordagem ingénua, sobretudo quando se lhe junta a dimensão orçamental dos novos recursos que esta nova assembleia comandaria.
Segundo, sobre os recursos, o manifesto propõe quadruplicar os recursos actuais da União Europeia. Estes recursos seriam obtidos através de impostos sobre rendimento, propriedade e consumo energético. No caso da tributação sobre o rendimento, seria agravada a progressividade fiscal sobre os indivíduos e seria introduzida progressividade sobre as empresas. No caso da propriedade, seria agravado o confisco acima de determinado nível patrimonial. Por fim, seria também reforçada a taxação das emissões de carbono.
Sobre este “mix” tributário, tenho a dizer o mesmo que sempre tenho dito: a progressividade fiscal, seja ela sobre os indivíduos ou sobre as empresas (que, em última instância, são detidas por indivíduos também), é a melhor maneira de matar o incentivo à produção, e os impostos sobre a propriedade individual representam o roubo institucionalizado ao nível do Estado. Quer uma, quer a outra devem ser firmemente rejeitados. Quanto aos impostos sobre o consumo de energia, regresso ao meu artigo da semana passada: cuidado com a utilização dos impostos para propósitos não orçamentais, porque quanto maior for o propósito não orçamental de um imposto menor acabará por ser o seu propósito orçamental. Sim, devemos ter uma preocupação ambiental, desde que a receita marginal da fiscalidade verde seja crescente e desde que existam alternativas tecnológicas que não impliquem o regresso às cavernas.
O manifesto condena o ultraliberalismo e a apologia da concorrência (“hardcore liberalism and the spread of competition”) que, alegadamente, caracterizam hoje o projecto europeu. Segundo os seus signatários, falta justiça e desenvolvimento social à Europa. Para o atingir, propõem reforçar a cooperação e fazer com que aqueles que mais beneficiaram da globalização contribuam mais para o financiamento do bem público (“making those who have gained from globalisation contribute to the financing of public-sector good”). São certamente intenções grandiosas – admito que, para a maioria dos signatários, são também genuínas –, mas representam o caminho do estatismo, e do uso coercivo do poder do Estado, que urge também repelir.
Dito isto, a cooperação entre países é certamente bem-vinda e, neste aspecto, o mercado livre – e as quatro liberdades fundamentais da União Europeia (pessoas, capitais, bens e serviços) – continua a ser a maior conquista da Europa no pós-Guerra. Devemos preservá-lo e reforçá-lo nas áreas em que ele ainda está por implementar. Mas cooperação é diferente de coordenação, e é de coordenação que o manifesto trata.
Excessiva coordenação traria centralização e centralização seria o oposto da descentralização que uma união de Estados soberanos, com culturas, idiomas e estágios de desenvolvimento diferentes, requer. Em suma, a proposta do manifesto, que é uma de coordenação e centralização políticas, associada infelizmente ao esbulho fiscal, é de rejeitar. O caminho é outro.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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