Sobre os meios e os fins

  • João Galamba
  • 7:24

Os mercados são um instrumento eficiente de atingir certos fins, mas não podem ser encarados como elemento soberano na definição e visão do sistema elétrico que queremos construir.

Desde meados dos anos 90 até mais ou menos junho de 2024, quando entrou em vigor a última revisão da legislação europeia (regulamento e diretiva) do mercado interno da eletricidade, o enquadramento legal europeu na área da Energia foi marcado, na sua essência, por uma única ideia: a produção e consumo de eletricidade deveria ser organizada, de modo prioritário, se não mesmo exclusivo, via mercados de eletricidade cada vez mais liberalizados. E o mercado spot grossista, o mais próximo da realidade física da produção e consumo de eletricidade, se funcionasse como previsto, daria os sinais preço necessários e suficientes para estruturar todo o setor, seja do lado da oferta, seja do lado da procura, assegurando, em simultâneo, o investimento para garantir a segurança do abastecimento ótima e preços eficientes para os consumidores de eletricidade. Tudo o que se desviasse desta ideia, seria sempre excecional, temporário, porque estrutural só mesmo essa ideia base de um mercado de compra e venda de eletricidade “todo-poderoso” e, na prática, soberano.

Durante vários anos, qualquer problema identificado no setor elétrico era sempre reconduzido a uma liberalização incompleta e ainda por realizar dos mercados de eletricidade. Havia dúvidas sobre se o investimento em novas centrais elétricas seria o suficiente para garantir a segurança do abastecimento? Então acabava-se com os limites de preços máximos “demasiado baixos” nos mercados spot de eletricidade e, se houver escassez, e o preço disparar, então é o sinal de preço que os investidores precisam para investir em capacidade de produção de energia elétrica adicional, evitando os riscos de “apagões”. E qual o nível ótimo de investimento para não haver “apagões”? Em vez de ser um problema de engenharia ou de planeamento de redes e sistemas elétricos, com peritos a definir qual o volume de investimento necessário, este passou a ser determinado, de modo endógeno, pelo mercado da eletricidade, dependendo de uma relação de equilíbrio entre o custo que o produtor tem de incorrer para assegurar essa capacidade adicional e o preço que os consumidores estão dispostos a pagar por essa mesma capacidade sob a forma de energia elétrica.

Não havia problema para o qual mais mercado e maior variação em alta de preços não fosse a (única) solução. Esta realidade funcionava razoavelmente bem quando o problema se limitava a ser o de assegurar o fornecimento de eletricidade de modo fiável e a um custo competitivo. Mas serve de pouco quando os fins são outros, ou, melhor dizendo, quando os fins não são apenas esses.

Quando definimos coletivamente objetivos substantivos, como os que estão associados a metas e objetivos de descarbonização do sistema elétrico; quando queremos promover e acelerar o investimento em produção de eletricidade a partir de fontes renováveis com custo marginal de produção nulo ou próximo de zero, como é o caso das tecnologias solar e eólica; quando se entende que um sistema com elevada penetração de renováveis, para funcionar de modo fiável, requer um certo tipo de flexibilidade que só o armazenamento e/ou a resposta da procura podem garantir; ou, ainda, quando queremos promover a tecnologia nuclear, essa ideia de que mercados de eletricidade liberalizados e sinais preço são a condição necessária e suficiente para, praticamente, tudo deixa de fazer grande sentido.

O que faz, então, mais sentido? Não faz, seguramente, qualquer sentido regressar ao passado e varrer a própria ideia de mercados, concorrência e preços do setor elétrico e da política energética restituindo preços fixados administrativamente. Mas também não faz nenhum sentido dispensar toda e qualquer ideia de planeamento de redes e sistemas elétricos, porque o sistema elétrico é um sistema e, por isso, envolve necessariamente alguma forma de planeamento. Isto é sempre verdade em qualquer sistema elétrico, sendo ainda mais quando impomos que esse sistema siga certos fins substantivos que transcendam o mero fornecimento eficiente de uma determinada commodity, no caso, a eletricidade. Neste caso, os mecanismos de mercado e o desenho dos mercados deve ser entendido instrumentalmente, ou seja, enquanto ferramenta, particularmente eficaz, para atingir certos fins, não sendo, porém, os próprios fins últimos, definidos pelo mercado, muito menos de modo endógeno.

Parece contraditório, e seguramente contradiz uma certa visão hegemónica dos mercados de compra e venda de eletricidade, mas, na verdade, até corresponde a uma visão mais adequada do papel e função dos mercados: os mercados não devem ser encarados como determinantes últimos de toda e qualquer realidade, porque são meras ferramentas, sem dúvida poderosas e eficazes, mas que têm de estar ao serviço de visões e escolhas políticas que os precedem.

A descarbonização do sistema elétrico não é o resultado do funcionamento de mercados competitivos de compra e venda de eletricidade, muito menos se essa descarbonização tiver de ser acelerada para garantir que o gás natural, que se tornou muito caro desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, tem cada vez menos influência na formação dos preços grossistas de eletricidade. Os sinais de preço para o investimento em centrais renováveis com custo marginal zero não podem ficar à mercê de dinâmicas de um mercado spot de curto prazo em que o preço de equilíbrio tende para zero, porque isso inviabilizaria o investimento nessas tecnologias. Mas também não deve dispensar mecanismos de mercado, recuperando lógicas administrativas e burocráticas, divorciadas de qualquer ideia de concorrência e de intensidade competitiva na fixação de apoios. O que é necessário é desenhar mercados adequados a esses fins e recorrer a certos mecanismos concorrenciais para garantir que esses fins são atingidos, idealmente, da forma mais eficiente

Sempre foi necessário, na prática, arranjar soluções que não seguissem a teoria, porque o investimento na produção de eletricidade, em bom rigor, nunca foi determinado por sinais preço gerados nos mercados spot de eletricidade. No entanto, por ser considerado uma “ajuda de Estado”, tal acontecia sob o escrutínio, sempre pesado, da Direção Geral da Concorrência. No chamado 4º pacote de energia, aprovado em 2019, não seguir a teoria tornou-se ainda mais difícil. Até que veio a crise energética de 2022, e tudo mudou. No que constituiu uma clara vitória do bom-senso sobre a ortodoxia económica, a mais recente revisão da legislação europeia sobre o mercado interno da eletricidade, que entrou em vigor em junho deste ano, a necessidade prática de não seguir a teoria passou a estar explicitamente prevista na lei.

Na área do investimento em produção de eletricidade a partir de fontes de energia renovável (e nuclear), a contratação a prazo, via mercados a prazo ou através de contratos por diferença bidirecional (“Two-Way Contracts for Difference”) ou de contratos de compra de energia (“Power Purchase Agreement”), se necessário com intervenção e garantias públicas, passou a ser considerada essencial para assegurar os volumes de investimento necessários e previstos nos Planos Nacionais de Energia e Clima (PNEC), porque se entende, corretamente, que os sinais de preço no mercado spot de eletricidade são manifestamente desadequados para este fim. O investimento em tecnologias capital intensivas, com custo marginal zero ou próximo de zero, como são as renováveis (e o nuclear) não podem depender de um modelo de mercado de eletricidade que tende a remunerar essas tecnologias ao seu custo marginal, porque isso inviabilizaria a realização de investimento.

Ativos flexíveis, como as baterias ou a bombagem hídrica, sendo a sua existência imprescindível para o funcionamento de sistemas elétricos descarbonizados, podem requerer pagamentos por disponibilidade/capacidade, os chamados mecanismos de capacidade. E se o investimento nesses ativos não estiver garantido através da volatilidade de preços no mercado spot de eletricidade, como, de facto, não parece ainda estar, eles têm de ser ativamente promovidos de outra forma, nomeadamente desenhando leilões competitivos para esse fim.

Podem ser desvios face a um certo ideal de mercado, e são, seguramente, desvios face à ortodoxia europeia das últimas décadas. Mas a sua consagração como elementos estruturantes da própria configuração e normal funcionamento, à escala europeia, do mercado interno de eletricidade deve ser vista como reconhecendo, em simultâneo, que os mercados são e serão sempre uma ferramenta, um instrumento poderoso e eficiente de atingir certos fins, mas não definem os fins, muito menos podem ser encarados como elemento soberano na definição e visão do sistema elétrico que queremos construir.

  • João Galamba
  • Economista e ex-secretário de Estado de Energia

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