Sete anos depois da resolução do BES, lucros chegaram mais rápido do que a Justiça

Oito mil milhões em provisões e quase o mesmo em garantias públicas depois, o herdeiro do BES é um banco bem mais pequeno, mas rentável. Já a Justiça está muito longe de ser feita.

O dia 3 de agosto de 2014 ficou para a história da banca em Portugal. O então governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, anunciava o que nos dias anteriores se ia afigurando inevitável, depois de um prejuízo de 3,6 mil milhões e o incumprimento dos rácios de capital: a resolução do Banco Espírito Santo e o fim do império liderado por Ricardo Salgado.

A solução do supervisor deixou os acionistas e vários grupos de lesados sem nada, mas protegeu os depositantes e evitou danos colaterais graves no sistema financeiro português. Só que o banco bom afinal tinha um lado negro, que fez dele um dos dossiês políticos mais quentes dos últimos anos. Sete anos depois, o Novo Banco dá lucro e está perto de terminar as suas obrigações com Bruxelas. Mas deixa uma conta milionária, garantida pelos contribuintes, para ser paga pelos bancos nas próximas décadas.

Se a instituição financeira está a virar a página, na Justiça a resolução está muito longe de vir a ter fumo branco. Um ano depois de conhecida a acusação na Operação Universo Espírito Santo, o processo ainda não chegou ao tribunal.

Um banco mais pequeno, mas lucrativo

Quem for ver os documentos de apresentação de contas do Novo Banco deste ano notará uma diferença substancial. Até ao final de 2020, os números do banco recorrente, o bom, eram apresentadas separadamente do banco legacy, o mau, que tinha os ativos para venda e os créditos tóxicos. A partir de 2021 passou a haver um só banco nos resultados. Tudo porque o peso que ainda existe do mau já é leve o suficiente para permitir que, sete anos depois, o Novo Banco seja rentável.

As contas do primeiro semestre, conhecidas esta segunda-feira, terminaram com um lucro de 137,7 milhões de euros. Uma inversão depois de muitos exercícios de prejuízos provocados pela indigestão dos ativos tóxicos herdados dos tempos de Ricardo Salgado.

Entre agosto de 2014 e o final de 2020, o Novo Banco acumulou 7,4 mil milhões em prejuízos, resultado de 7,95 mil milhões em provisões, geradas pelo registo de imparidades no crédito, títulos e outros ativos. Mas chega a 2021 bem mais limpo. De 11,28 mil milhões em non-performing loans (NPL) em 2016, passou para 2,2 mil milhões no final de junho. O rácio de NPL, que chegou a uns estratosféricos 33,4%, está nos 7,3%.

A limpeza, como se sabe, teve o patrocínio dos contribuintes. Entre a injeção inicial e o mecanismo de capital contingente, o Fundo de Resolução já colocou cerca de 8,3 mil milhões no Novo Banco, dos quais 7,5 com empréstimos garantidos pelo Estado. A que é preciso somar mil milhões de euros injetados pelo Lone Star quando comprou, em outubro de 2017, a custo zero, 75% da instituição.

David Quintin, Carlos Costa, Sérgio Monteiro na venda do Novo Banco, em outubro de 2017.Paula Nunes/ECO

O Novo Banco (NB) pode ser um banco novo, mas é também um grupo substancialmente mais pequeno do que era o BES. Foi alienando negócios pelo caminho, como a Tranquilidade e a GNB Vida, vendidas à Apollo e à Apax. E saindo de outras geografias, como Espanha, que ficou para o Abanca. O balanço não engana, mesmo que boa parte dele fosse “fruta podre”, como descreveria Carlos Costa na última comissão parlamentar de inquérito: o ativo encolheu 39%, com o crédito a clientes a cair de 40 mil milhões para 24,5 mil milhões.

Não foi apenas a atividade do banco que encolheu, toda a estrutura tornou-se mais enxuta. O NB herdou 674 balcões do BES e tem agora muito perto de metade: 349. O número de colaboradores do grupo caiu na mesma medida, de 8.689 para 4.470. Os custos são também significativamente mais baixos, o que contribui para o regresso à rentabilidade. O único indicador que se mantém idêntico são os depósitos de clientes, que rondam os 26 mil milhões.

Concluída a reestruturação, António Ramalho quer soltar-se das amarras da Direção-Geral da Concorrência da Comissão Europeia. De vendedor, o banco pode passar a comprador, disputando neste momento com a Apollo a compra do EuroBic. A nova vida do NB vai passar também por uma nova sede, no Taguspark, para onde o banco pretende mudar-se em 2022.

“Esta mudança permite-nos iniciar um novo capítulo da nossa história, numa nova morada liberta dos elos que ainda nos ligam ao passado e que irá promover uma nova filosofia de trabalho assente na colaboração, flexibilidade e sustentabilidade”, afirmou recentemente o CEO. Pode ser verdade para o NB, mas não para a conta que deixou para os restantes bancos e para os contribuintes.

O ónus político e para o sistema financeiro

Voltemos ao dia 3 de agosto de 2014. O Banco de Portugal emite um comunicado onde escreve que “a generalidade da atividade e do património do Banco Espírito Santo, S.A. é transferida, de forma imediata e definitiva, para o Novo Banco, devidamente capitalizado e expurgado de ativos problemáticos”. Os factos demonstrariam o contrário.

Não foi a única presunção desmentida pelo correr do tempo: “as perdas relacionadas com os ativos problemáticos serão suportadas pelos acionistas e credores subordinados do Banco Espírito Santo, S.A.. Tal significa que esta operação não envolve custos para o erário público”. Quer esta, quer a anterior afirmação, tornar-se-iam o foco de ataques políticos entre esquerda e direita e entre o anterior ministro das Finanças, Mário Centeno, e o seu antecessor no cargo de governador do Banco de Portugal.

O tema continua a ser tóxico, como demonstrou a última comissão parlamentar de inquérito, que acabaria sem relator e com o relatório final aprovado com o voto contra do PS, devido às críticas do documento ao processo de venda à Lone Star pelo Executivo socialista. Já o Tribunal de Contas foi salomónico na sua auditoria: apontou falhas ao Fundo de Resolução, ao Governo e à gestão do Novo Banco.

Com o fim das injeções de capital, também a temperatura política do tema deverá baixar. Fica a conta do Fundo de Resolução, que terá de saldar ao Estado mais de seis mil milhões de euros durante os próximos 25 anos. São os bancos e outras entidades financeiras supervisionadas pelo Banco de Portugal que terão de pagar a fatura, mas enquanto isso não acontecer o dinheiro é garantido pelos contribuintes.

Faltam as contas com a Justiça

Se o NB deu a volta às contas, as contas com a Justiça continuam por saldar e prometem dar que falar nos próximos anos. Se os processos de contraordenação dos reguladores, Banco de Portugal e CMVM, contra antigos gestores do BES já têm decisões e recursos em tribunal, o processo Universo Espírito Santo, onde Ricardo Salgado é a figura central, ainda não passou da fase da acusação.

O Ministério Público acusou, há pouco mais de um ano, 18 pessoas e sete empresas por associação criminosa, corrupção ativa e passiva no setor privado, falsificação de documentos, infidelidade, manipulação de mercado, branqueamento e burla qualificada contra direitos patrimoniais de pessoas singulares e coletivas. Ricardo Salgado é acusado de 65 crimes, entre eles o de associação criminosa. O antigo presidente do BES começou a ser julgado o mês passado, mas no âmbito da Operação Marquês.

Há outras pontas soltas. Os fundos internacionais lesados pela decisão de fazer o bail in de 2.000 milhões em obrigações seniores do BES, para capitalizar o Novo Banco, contestam a decisão do Banco de Portugal nos tribunais e ameaçaram, em junho, não participar nas emissões de dívida europeias para financiar o plano de recuperação. Quem também continua à espera são os credores da massa falida do BES.

O NB pode estar perto de livrar-se do passado, mas a digestão da herança do colapso do BES está para durar.

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