A promessa “de amor” de José Neves que deixou os investidores da Farfetch sem nada
A criação da Farfetch foi um negócio que começou "por amor", mas que terminou com os investidores sem nada.
“O CEO tem a profissão mais solitária do mundo”. A frase é de José Neves, o empreendedor português que fundou a Farfetch, o primeiro unicórnio com ADN português, e nunca fez tanto sentido como nos últimos dias. Com a tecnológica à beira da rutura financeira, o empresário de Guimarães foi forçado a tomar decisões difíceis, mas inevitáveis para impedir a companhia de fechar portas e tentar manter os postos de trabalho dos 6.000 funcionários que o unicórnio emprega. A sua persistência salvou a empresa que criou “por amor à moda”, mas não evitou as perdas dos acionistas, muitos deles trabalhadores.
Quando José Neves decidiu criar, em 2008, a Farfetch, o mundo financeiro debatia-se com a maior crise desde a Grande Depressão. Durante esse ano, milhões de milhões foram perdidos nos mercados financeiros, com os investidores fechados a novos projetos e focados em evitar mais perdas. O empresário português manteve-se inflexível e não se deixou desanimar pelas dificuldades que lhe surgiam e todos os bancos lhe fechavam a porta. Valeu-lhe o seu próprio dinheiro, que investiu na empresa.
Mas a veia empreendedora não começou com a Farfetch. Antes de ter a ideia de lançar esta plataforma eletrónica de venda de produtos de luxo, numa feira de moda em Paris, já tinha lançado, aos 19 anos, uma empresa de produção e desenvolvimento de software. “Aos 19 anos, em 1993, comecei a minha primeira empresa. Era uma “loja de software”, onde criava software para empresas e, sendo do norte de Portugal e com um historial de família ligado ao calçado, as empresas de moda dessa área bastante cedo se tornaram nas minhas principais clientes”, conta na apresentação da empresa aquando do IPO na bolsa de Nova Iorque.
Apaixonado por moda e tecnologia – começou a programar com apenas 8 anos, quando recebeu o seu primeiro computador –, a Farfetch foi o resultado do casamento destas duas paixões.
Aos 19 anos, em 1993, comecei a minha primeira empresa. Era uma “loja de software”, onde criava software para empresas e, sendo do norte de Portugal e com um historial de família ligado ao calçado, as empresas de moda dessa área bastante cedo se tornaram nas minhas principais clientes.
Da Paris Fashion Week, em 2007, trouxe a “ideia de criar uma plataforma que ajudaria as pequenas e médias empresas a ter acesso a esse mercado global, um negócio que teria alguma margem de defesa e de manobra relativamente à concorrência dos grandes gigantes mundiais do ecommerce. Era uma área que estava em crescimento explosivo. E foi a génese da Farfetch”, adiantou numa entrevista à Visão em 2016. Daí até ao nascimento da Farfetch passou-se sensivelmente um ano.
Depois de dois primeiros anos difíceis, a partir de 2010 conquistou as primeiras rondas de financiamento e acelerou o crescimento. Em 2015, atingiu o estatuto de primeiro unicórnio português, com uma avaliação acima de mil milhões de euros, aquando da entrada da DST Global. No auge de crescimento, José Neves adiantava que esperava que a sua empresa fosse como a Apple e, tal como há um momento antes e depois da criação do iPhone, haja um momento antes e depois da Farfetch.
Se é certo que a ascensão da Farfetch é inegável, assim como a sua influência no comércio eletrónico de bens de luxo, a crise chegou aos negócios da empresa. A guerra na Europa e o encerramento da economia chinesa foram dois golpes para as contas da empresa, ao mesmo tempo que o regresso às lojas físicas abrandou as vendas online.
“Há áreas da empresa com um crescimento muito forte, temos novos projetos, como a adição da Reebok ao nosso portefólio de marcas, e temos outras em que, devido a uma procura menos acentuada, à nossa decisão de terminar as operações na Rússia – era um mercado muito grande para a Farfetch – e também o abrandamento na China, em que efetivamente, essa racionalização significa que vai haver redução de equipas. Em grande medida, foi o que já fizemos nos últimos meses. Continuamos uma empresa que cresceu mais de 30% ano em todos os seus 15 anos de história e, este ano (2022) vai ter um crescimento que apontamos de 0-5%, basicamente, flat. Tem de haver uma adaptação a estas novas circunstâncias”, adiantava numa entrevista ao Eco, em fevereiro.
A verdade é que os problemas acabaram por levar a melhor e as contas do primeiro semestre deste ano já indicavam problemas. A empresa reportou prejuízos de 281,34 milhões de dólares no primeiro semestre deste ano. As contas do terceiro trimestre já não foram conhecidas, com a companhia a adiar o reporte, a 28 de novembro, e a espoletar uma correção sem precedentes no preço das ações.
Com uma dívida de 1,6 mil milhões de dólares, a vencer entre 2027 e 2030, e sem apoio de parceiros, como a Richemont, que se mostrou indisponível para investir ou emprestar dinheiro à Farfetch, José Neves começou a ficar sem hipóteses. Recorde-se que, em agosto do ano passado, a fabricante das joias Cartier e dos relógios IWC tinha informado que a Farfetch se preparava para comprar uma participação de 47,5% na retalhista de artigos de luxo online YOOX Net-A-Porter (YNAP) à Richemont. O acordo – entretanto desfeito – entre Richemont, Farfetch e Symphony Global abria o caminho, através de um mecanismo de opções de compra e venda, à possibilidade de a empresa fundada por José Neves vir a adquirir as restantes ações na YNAP.
Com as ações em queda livre na bolsa de Nova Iorque – estrearam-se no mercado em setembro de 2018, vendidas a 20 dólares cada – e sem liquidez, o empresário recorreu a todos os recursos para travar a falência da empresa de “coração português” que criou em 2008. Os salvadores, com uma linha de liquidez de 500 milhões de euros, têm nome sul-coreano: Coupang. O futuro do empresário português na nova Farfetch é ainda uma incógnita, mas José Neves terá pedido desculpa aos trabalhadores pela forma – solitária – como conduziu este processo, mantendo-os no escuro sobre as opções em cima da mesa.
“O CEO está sempre num palco, aquilo que diz aos colaboradores, aos colegas do board [conselho de administração], aos investidores, aos media, é analisado de uma forma que não se aplica a outras pessoas da empresa. Costuma dizer-se que quando as decisões são fáceis nunca chegam ao CEO. As coisas escalam e quando chegam ao CEO são decisões que podem determinar o futuro da empresa e normalmente não têm grandes variáveis”. A citação, quase profética, remonta a 2016 mas não poderia ser mais certeira.
Acionistas (e trabalhadores) perdem tudo nas ações
O principal arrependimento de José Neves é não ter sido possível salvar a empresa cotada, a empresa que criou “por amor à moda”, conforme explicou, em carta, e que constava dos documentos que a empresa apresentou à New York Stock Exchange para oficializar o IPO do unicórnio, na bolsa nova-iorquina.
Na mesma carta, onde apresentava a empresa, reiterava que a Farfetch nasceu de uma paixão. “A minha paixão pelos designers que conhecia, pelas boutiques, pelas pessoas apaixonadas pela moda espalhadas pelo mundo todo, inspiraram-me a criar um sítio único, uma plataforma, onde todos poderiam cruzar-se e encontrar-se. Consumidores, criadores, curadores, todos unidos por amor à moda: foi esta a visão que esteve na génese daquilo que é hoje a Farfetch“.
A nossa promessa para com os nossos investidores é de uma dedicação, um laço inquebrável, que criamos com os nossos consumidores, baseando-nos na inovação e foco num crescimento sustentável e contínuo.
E concluía: “A nossa promessa para com os nossos investidores é de uma dedicação, um laço inquebrável, que criamos com os nossos consumidores, baseando-nos na inovação e foco num crescimento sustentável e contínuo“. Mas, conforme foi confirmado pelo próprio empresário esta segunda-feira, 18 de dezembro, a promessa aos investidores não foi cumprida e quem confiou na empresa vai perder todo o seu investimento.
“O Conselho de Administração lamenta que o processo não tenha conduzido a uma solução que garanta que a Farfetch Limited, a entidade cotada na bolsa, continue a ser uma empresa em atividade”, adianta a Farfetch em comunicado. “Quando a venda estiver consumada, a Farfetch Limited estima que os detentores das ações ordinárias de classe A e B e as notas convertíveis não recuperarão qualquer valor do investimento na Farfetch”, acrescenta o mesmo documento.
Depois de anos a especular sobre a entrada em bolsa, a Farfetch rumou ao mercado de capitais em setembro de 2018, com as ações no IPO a serem vendidas a 20 dólares. Os títulos fecharam a cotar nos 0,64 dólares, na véspera do anúncio do acordo com a Coupang.
Estamos a criar valor e, se todos colaborarmos na criação desse valor, todos vamos colher esses benefícios. São mais de 100 milhões de dólares por ano – em 2020 e 2021 foram entregues cerca de 80 milhões em ações aos colaboradores – que pagamos em ações aos nossos colaboradores.
Conhecido pelo seu espírito empreendedor e sonhador, José Neves sempre foi visionário e dois um dos primeiros empresários a incluir os trabalhadores no plano de distribuição de ações. “No caso da Farfetch, tentamos criar um pacote mais atrativo possível. Posso dar o exemplo de algo invulgar – certamente no tecido empresarial português, mas mesmo a nível internacional – que é todos os colaboradores da Farfetch serem acionistas”, adiantou o empresário nortenho na mesma entrevista ao Eco, referindo que “parte da nossa compensação é em ações”.
“Estamos a criar valor e, se todos colaborarmos na criação desse valor, todos vamos colher esses benefícios. São mais de 100 milhões de dólares por ano – em 2020 e 2021 foram entregues cerca de 80 milhões em ações aos colaboradores – que pagamos em ações aos nossos colaboradores. Mais um exemplo de algo de inovador que temos na Farfetch e que tem funcionado muito bem”, confirmava. Perante o desfecho confirmado esta semana, quem manteve as ações em carteira, prepara-se agora para dizer adeus a estas remunerações.
“Hub” tecnológico português
Apesar do desfecho da Farfetch, é inegável a relevância de José Neves para o desenvolvimento de um ecossistema tecnológico em Portugal. Depois da Farfetch, outros unicórnios surgiram em Portugal, colocando o país no radar dos investidores internacionais.
Há muitos exemplos de empresas, a Outsystems, a Talkdesk, a Feedzai, muitas outras que estão a fazer o nome lá fora, e muitas outras pequenas empresas, startups, que criaram realmente um ecossistema muito interessante em Portugal.
“Portugal já é visto como um país em que se criam tecnológicas de grande qualidade e onde há muito talento”, adiantou José Neves. “Temos tudo para sermos um tech hub, já somos um tech hub na Europa. Mesmo quando a gente fala internacionalmente, quando falo com empresários… Há muitos exemplos de empresas, a Outsystems, a Talkdesk, a Feedzai, muitas outras que estão a fazer o nome lá fora, e muitas outras pequenas empresas, startups, que criaram realmente um ecossistema muito interessante em Portugal”, acrescentou.
Empresas como a Outsystems, Feedzai, Talkdesk, Remote e Sword Health juntaram-se à Farfetch na lista de empresas com uma avaliação superior a mil milhões de dólares com ADN português.
Fundação José Neves investe no conhecimento
Licenciado em Economia pela Universidade do Porto, José Neves é um defensor do conhecimento e usa parte do seu património para ajudar quem precisa e quer aprender. Criada em maio de 2019, a Fundação José Neves nasceu com a “missão de contribuir para a transformação de Portugal num ‘país de conhecimento’, através da educação e do desenvolvimento humano”.
“O meu compromisso como Fundador, é dotar a Fundação de meios significativos, assumindo o compromisso de doar dois terços dos meus ativos, ao longo da minha vida, para perseguir este objetivo maior”, escreve José Neves na carta de apresentação no site da Fundação com o seu nome, na qual se juntaram Carlos Oliveira e António Murta.
O meu compromisso como Fundador, é dotar a Fundação de meios significativos, assumindo o compromisso de doar dois terços dos meus ativos, ao longo da minha vida, para perseguir este objetivo maior.
Ao longo dos últimos anos tem promovido várias iniciativas, que incluem um programa de bolsas reembolsáveis ISA FJN, na qual a Fundação paga as propinas enquanto o estudante conclui a sua formação. Tem ainda iniciativas na área da saúde mental, Pacto Emprego Jovem e o relatório “O Estado da Nação: Educação, Emprego e Competências em Portugal“.
Este importante trabalho de diagnóstico da economia portuguesa tem o objetivo de apresentar a situação do país nesses três domínios e “promover a discussão pública para uma urgente evolução do sistema de educação e formação e o seu alinhamento com as necessidades do mercado de trabalho e com os desafios do futuro”. “É missão deste relatório descobrir e disseminar conhecimento do ponto de situação da educação, do emprego e das competências em Portugal, apresentando metas aspiracionais para 2040”, pode ler-se na página online da Fundação.
Os últimos resultados mostram que ainda há muito para fazer, mas há alguns indicadores positivos. Na mesma entrevista ao Eco, em fevereiro, José Neves congratulava-se com o facto de “os salários em certas áreas técnicas, como engenharia, em Portugal têm vindo a subir constantemente nos últimos anos, tendo acelerado ao longo do teletrabalho. Pessoalmente, deixa-me muito satisfeito, por isso criei a minha Fundação para que mais portugueses tivessem acesso a melhor educação, a melhores salários, e melhores condições de vida”. “Para nós, esta abertura de Portugal e das tecnológicas ao mercado global, não só de clientes, mas também ao mercado global de trabalho, é fantástico”, rematava.
Adepto de práticas de meditação e budista, José Neves tem hoje outras preocupações, como garantir que a Farfetch resiste ao tsunami que está a atravessar, mantendo a sua identidade. A questão é se será o próprio Neves a gerir esse processo e quais as implicações para o futuro destes marketplaces de artigos de luxo a nível global.
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