Da surpresa ao “business as usual”. A crise da Farfetch vivida por dentro

O ambiente que se vive na Farfetch é de "tensão" e incerteza quanto ao futuro, partilharam com o ECO trabalhadores da tecnológica. Temas como os bónus e os critérios nos despedimentos geram discórdia.

Silêncio total. À porta das instalações da Farfetch no Avepark, em Guimarães, o som da chuva é apenas interrompido por algumas saídas para fumar. Ao contrário do edifício futurista, que marca a paisagem e dá luz ao parque de ciência e tecnologia, o ambiente entre os poucos trabalhadores que por ali se veem é tão cinzento como o dia. Mesmo que no edifício estejam essencialmente trabalhadores que ficaram de fora dos despedimentos, “pelo menos para já”. Há muita “tensão” no ar, depois de uma avalancha que apanhou praticamente todos de surpresa.

Achávamos que estava tudo bem. Só em dezembro é que percebemos” que havia problemas, partilha uma trabalhadora, lamentando ao ECO a situação que a empresa atravessa. “Somos uma família. Tenho colegas incríveis, sempre com espírito de entreajuda”, refere ainda, reconhecendo que, por estes dias, “o ambiente é de alguma tensão”. Mesmo assim, o trabalho segue “normalmente” e ao nível das chefias “está tudo igual”.

Achávamos que estava tudo bem. Só em dezembro é que percebemos [que havia problemas].

Trabalhadora da Farfetch

A mesma trabalhadora, que prefere não ser identificada, refere que a equipa tem sido informada “na reunião da manhã” sobre o que se passa com a empresa, agora controlada pelos sul-coreanos da Coupang, após a venda fechada em dezembro. Outro trabalhador que acedeu falar com o ECO também destaca que a situação é “difícil”. “Mas é uma fase e vai ultrapassar-se”, confia. “Estamos a trabalhar normalmente. É esperar para ver”, comenta.

Quanto a José Neves, o empresário que fundou a Farfetch, só o veem agora através das calls. Ao contrário do que acontecia no início, quando aparecia muitas vezes em Guimarães, o empreendedor português que fundou o primeiro unicórnio com ADN português não tem dado a cara nas instalações futuristas de 8.000 metros quadrados que a Farfetch inaugurou em 2018. Foi neste mesmo ano que o marketplace abriu os seus escritórios em Braga. Um ano depois, novos escritórios no Porto, na avenida da Boavista. Ambos foram encerrados após o verão do ano passado.

A justificação dada pela empresa é uma otimização de espaços, “alinhada com as nossas políticas de trabalho flexíveis e visa otimizar a nossa capacidade atual para atender às necessidades efetivas”. Mas a verdade é que estes encerramentos ocorreram precisamente no trimestre que lançou o alerta para a situação da Farfetch. Quando a empresa, sem que nada o antecipasse, cancelou a apresentação de contas do período entre julho e o final de setembro, a 29 de novembro. A reação foi imediata, com as ações da tecnológica a caírem a pique em bolsa e os trabalhadores a despertarem para os problemas na empresa.

Ainda em setembro, Tim Stone foi apontado como o novo chief financial officer (CFO) da Farfetch, substituindo no cargo Elliot Jordan, cuja saída tinha sido anunciada em fevereiro do ano passado. Apesar de ter poucas responsabilidades no desempenho operacional da empresa, uma vez que apenas assumiu funções de administrador financeiro em setembro, está entre os oito diretores que, ou bateram com a porta, ou lhes foi apontada a porta da saída.

De uma forma ou de outra, o CFO abandonou funções após a concretização da venda à Coupang. E já tem, desde a passada sexta-feira, um substituto: Pankaj Srivastava, o antigo vice-presidente de operações financeiras globais da Coupang e chefe de operações de negócios globais. Uma sucessão de mudanças que têm sido acompanhadas pelos trabalhadores com grande ansiedade.

Foi um bocado repentino. Começamos a pensar [que algo não estava bem] quando não foram revelados os resultados da empresa. Foi uma surpresa.

Trabalhador da Farfetch

“Foi um bocado repentino. Começamos a pensar [que algo não estava bem] quando não foram revelados os resultados da empresa [relativos ao terceiro trimestre]. Foi uma surpresa”, confessa outra trabalhadora, em declarações ao ECO. “Não tem sido fácil. O clima é afetado pelas coisas que têm sucedido. A equipa está a tentar lidar” com a situação. “Muita coisa soubemos pelas notícias. Não foi um processo transparente desde o início. Há sempre balas perdidas”, lamenta.

Apesar de reconhecer que os trabalhadores da empresa ignoravam a situação financeira da Farfetch, liderada por José Neves até meados de fevereiro, esta colaboradora mostra-se compreensiva com o criador do primeiro unicórnio português. “Não sei as dificuldades que teve que enfrentar. Tenho-o em boa consideração. Acredito que se pudesse fazer alguma coisa diferente, faria”, adianta.

Não sei as dificuldades que [José Neves] teve de enfrentar. Tenho-o em boa consideração. Acredito que se pudesse fazer alguma coisa diferente, faria.

Trabalhador da Farfetch

“Estão todos os colaboradores a viver a situação de forma cautelosa, algo que nunca havia acontecido na história da empresa, sem saber muito bem qual o rumo atual, não sabendo também se haverá uma fase adicional de cortes, apesar de estipulado que não é uma hipótese que está atualmente em cima da mesa”, aponta outro trabalhador da Farfetch.

À semelhança do que aconteceu com a maioria dos colaboradores, que estavam no escuro sobre os problemas da empresa – a falência estava por dias se não tivesse havido um injeção de capital dos sul-coreanos em dezembro -, para este trabalhador “a situação começou a tornar-se um pouco evidente e a ganhar proporções aquando da saída do anterior CFO e com o cancelamento do anúncio dos resultados trimestrais que a empresa fazia ao público, sem qualquer justificação inicial”.

Porquê eu e não outro?

Os critérios na base dos despedimentos, ou a ausência deles, têm sido um dos temas que tem gerado maior debate entre os que saem e os que ficam. “O maior sentimento é o de procura de justificação sobre o porquê de saírem alguns colaboradores ao invés de outros, sem perceber o critério em específico”, atira o mesmo trabalhador. “Como dito por um ex-colaborador, ‘fizemos tudo o que podíamos e fizemo-lo bem. No final isso não teve importância’”, acrescenta.

O maior sentimento é o de procura de justificação sobre o porquê de saírem alguns colaboradores ao invés de outros, sem perceber o critério em específico.

Trabalhador da Farfetch

E são muitos os que vão sair. Seja através de rescisões por mútuo acordo – a empresa oferece um salário por cada ano de contrato sem direito a subsídio de desemprego – ou no processo de despedimento coletivo, no qual a empresa terá que pagar os 14 dias legais por cada ano de contrato e com acesso a subsídio de desemprego, o objetivo é cortar entre 25% e 30% o número de funcionários a nível global. No total, cerca de 2.000 trabalhadores poderão despedir-se da Farfetch. Destes, metade (1.000) poderão ser despedidos em Portugal, onde a empresa tinha cerca de 3.000 trabalhadores.

Não se sabe ao certo o número de pessoas que vão sair. Não foi comunicado internamente”, confessa o trabalhador da Farfetch, admitindo que “a maior consequência terá sido efetivamente a perda massiva de colaboradores, sendo muitas equipas cortadas por completo”.

José Neves, presidente da Fundação José Neves e CEO da Farfetch, em entrevista ao ECO - 21JUN22
José Neves, fundador da FarfetchRicardo Castelo/ECO

Depois de, no mesmo dia em que foi anunciado que José Neves se demitiu do cargo de CEO, a empresa ter informado que, além de Neves, saíram outros oito diretores, esta semana foi noticiado pelo Público que alguns diretores de áreas tecnológicas da Farfetch se demitiram por não aceitarem a exigência de mais despedimentos colocada pelos novos donos da empresa. Segundo a RTP, foram sete os diretores que se despediram. Em alguns setores, os cortes exigidos rondam os 80% da força de trabalho, e os diretores entenderam que iriam ficar sem equipa para gerir e, como tal, sem condições de trabalho.

Já esta sexta-feira, dia 23 de fevereiro, era a data limite para os trabalhadores abordados pela Farfetch decidirem se aceitavam os termos propostos pela empresa para sair. Segundo apurou o ECO, a empresa deu esta última semana aos trabalhadores na lista de despedimentos a possibilidade de não trabalharem, para poderem ponderar com calma as suas opções.

Dos bónus a quem fica à lista de ofertas de emprego para quem vai

Presente em Guimarães, no Porto e em Lisboa, a Farfetch ainda não detalhou quais os seus planos para as operações no país, apesar de garantir quePortugal continua a ser uma base importante para a Farfetch”. Enquanto reina a indefinição quanto ao futuro e quanto ao número exato de pessoas a dispensar, são vários os pontos de discórdia. Um deles são as ações, cujo valor ficou reduzido a zero, deixando sem nada os trabalhadores que receberam prémios em ações e não as venderam. Por outro lado, no mesmo dia em que arrancou com o plano de despedimentos em Portugal, a nova Farfetch comunicou aos funcionários que ficavam o pagamento de prémios.

À medida que fazemos mudanças estruturais importantes como as anunciadas ontem, também acreditamos que é profundamente importante reconhecer e recompensar a equipa que proporcionará as melhores experiências do setor para as marcas, boutiques e clientes que servimos, garantindo que os nossos talentos recebem fortes pacotes de remuneração.

Farfetch

“À medida que fazemos mudanças estruturais importantes como as anunciadas ontem, também acreditamos que é profundamente importante reconhecer e recompensar a equipa que proporcionará as melhores experiências do setor para as marcas, boutiques e clientes que servimos, garantindo que os nossos talentos recebem fortes pacotes de remuneração“, escreveu a Farfetch aos colabores não incluídos nos despedimentos. E continua: “Para reconhecer o incrível sucesso que esperamos alcançar, tenho o prazer de compartilhar que recebeu o prémio de talento de 2024″.

Quanto aos bónus, estes não são iguais para todos, sendo deduzido que os valores percentuais são diretamente proporcionais à senioridade na empresa e ao cargo que representam”, explica ao ECO um trabalhador da Farfetch.

Entre as promessas de bónus para os que ficam, a Farfetch fez um levantamento das empresas a contratar e partilhou-o com os funcionários dispensados. “Na sequência das comunicações recentes que recebeste sobre a tua função não ter continuidade na Farfetch, queremos colocar ao teu dispor alguns recursos que te podem ajudar na procura de uma nova oportunidade para a tua carreira”, referiu a empresa num email enviado aos trabalhadores de saída, tendo compilado “uma lista de empresas que estão atualmente a contratar e os seus respetivos job boards”.

Instalações da Farfetch em GuimarãesHUGO DELGADO/LUSA 13 maio, 2018

“Além disso, temos alguns contactos diretos em empresas em que confiamos e que estão interessadas em receber diretamente perfis de Farfetchers. Caso tenhas interesse em que façamos essa partilha, por favor preenche este form com o teu consentimento e nós enviaremos o teu perfil LinkedIn para estas empresas”, adiantou a empresa na mesma mensagem. A lista com vagas disponibilizada pela Farfetch inclui mais de 150 ofertas de trabalho de empresas em Portugal e noutras localizações.

Enquanto em Portugal, as negociações arrancaram no dia 16 de fevereiro, um após o anúncio do plano de despedimentos, no Reino Unido as conversações iniciaram-se nos últimos dias. Questionada pelo ECO, a Farfetch apenas reitera a informação de que a redução global será até 30%, rejeitando disponibilizar as percentagens por regiões. Quanto ao futuro da empresa idealizada por José Neves, nem os próprios trabalhadores ousam deixar um prognóstico.

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