Preços mais altos nos alimentos sem reflexo nas margens das retalhistas
A elevada subida dos preços dos alimentos em 2023 não se refletiu em maiores margens de lucro das retalhistas. Com os preços a cair, 2024 pode ser um ano de viragem.
2023 voltou a ser um ano marcado por uma elevada inflação nos preços dos alimentos. Apesar do ano ter terminado com uma forte desaceleração dos preços, os primeiros meses de 2023 ainda marcaram aumentos que chegaram a um máximo de 20%. Apesar desta escalada, as margens das maiores retalhistas nacionais não evidenciam um aproveitamento desta conjuntura. Pelo contrário, têm contraído.
O último ano marcou uma inversão da subida galopante dos preços. A inflação média anual foi de 4,3% em 2023, abaixo dos 7,8% fixados um ano antes. Contudo, olhando apenas para os produtos alimentares, os números permanecem substancialmente mais elevados: os preços dos alimentos não transformados abrandaram para 9,5% em 2023, o que compara com 12,2% em 2022.
“As variações médias [dos produtos alimentares não processados] em 2023 foram de 14,7% no primeiro semestre e 4,8% no segundo, resultado de uma trajetória de diminuição progressiva das taxas homólogas a partir de maio (quando a maioria dos produtos considerados neste agregado passou a estar isenta de IVA)”, explica o Instituto Nacional de Estatística (INE). O IVA zero, num cabaz de 46 produtos, entrou em vigor em abril do ano passado e terminou no final do ano, uma medida que permitiu um alívio nos preços.
A Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED) defendeu que a isenção de IVA para 46 categorias de produtos foi uma medida “muitíssimo bem-sucedida do ponto de vista alimentar”, que permitiu uma poupança significativa às famílias. “Baixámos o IVA em 46 categorias de produtos, que representam, em muitas lojas, 10.000/15.000 produtos e achamos que o nosso papel, enquanto promotores de preços equilibrados, foi cumprido”, afirmou o diretor-geral da APED, Gonçalo Lobo Xavier.
Um relatório publicado esta quarta-feira pelo Banco de Portugal refere que o anúncio da isenção temporária de IVA num cabaz de produtos alimentares “levou a um ajuste antecipado de preços” de 1,27%. Por outro lado, quando a medida foi revertida, a passagem da subida dos preços para os consumidores foi menor do que a esperada, adianta o Banco de Portugal.
Tal como já tinha sido avançado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), o Banco de Portugal estima que o fim do IVA zero teve um impacto de 0,7 pontos percentuais sobre a variação do índice de preços no consumidor.
O aumento de preços [para os clientes finais] foi menos de metade do aumento de preços que nos chegou dos produtores. Houve um esforço muito grande de contenção de preços, tanto é assim que tivemos uma quebra de rentabilidade no retalho alimentar em 2023.
O anterior ministro da Economia e do Mar, António Costa e Silva, chegou a dizer que existe uma “divergência muito grande em alguns produtos entre os preços de aquisição e de venda ao público” — afirmações veementemente rebatidas pelo setor. Tanto a Sonae, que detém os supermercados Continente, como a Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, dizem estar a controlar a subida dos preços e a absorver o aumento dos custos, com impacto na sua rentabilidade. Mas o que mostram os números?
Apesar das duas maiores redes de supermercados em Portugal — Continente e Pingo Doce — terem conseguido aumentar as suas receitas e EBITDA, quando se olha para as margens do negócio, estas não estão a aumentar e, em alguns casos, até espelham um abrandamento.
- O negócio da Sonae MC, que detém o Continente, fechou o ano de 2023 com uma margem EBITDA (margem de lucro operacional) de 9,7%, acima dos 9,5% registados um ano antes, mas mantendo-se abaixo dos mais de 10% registados nos anos anteriores. Ou seja, por cada 100 euros de vendas realizadas, a Sonae contabilizou lucros operacionais de 9,7 euros. Quando se analisa a margem líquida (rácio entre o resultado líquido e as receitas), este indicador está em queda, revelando uma quebra de rentabilidade. Depois de já ter caído de 3% em 2021 para 2,7% em 2022, a margem líquida voltou a baixar para 2,6% no ano passado, adiantou João Dolores na apresentação de resultados anuais, falando numa “contração ligeira” neste indicador e prometendo que a dona do Continente vai continuar a “conter os preços” para manter a liderança na grande distribuição, referiu o administrador financeiro.
- Já no caso da Jerónimo Martins, o Pingo Doce terminou o ano com uma margem EBITDA de 5,8%, abaixo dos 5,9% e 6% fixados nos dois anos anteriores. No caso do Recheio, a cadeia de cash&carry do grupo liderado por Pedro Soares dos Santos até apresentou uma evolução positiva da margem EBITDA, aumentando para 5,4%, mas permanece abaixo da fasquia dos 6% registados antes da pandemia. A margem bruta do grupo [as contas da Jerónimo Martins não detalham os custos das vendas de mercadoria por segmento, sendo apenas possível calcular a taxa bruta do grupo] baixou de 21% para 20,42%, mantendo a tendência de descida registada desde 2020.
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Os líderes da Sonae e da Jerónimo Martins têm advogado que as cadeias de supermercados que detêm continuam a aplicar preços baixos, mantendo um ambiente altamente competitivo no setor.
“Fazemos um esforço enorme para termos poupanças, mas as coisas chegam-nos mais caras – e o custo da mão-de-obra também aumentou muito. Em 2024 há uma tendência para os preços baixarem e isso ajuda sempre. (…) Esperemos que a inflação alimentar baixe durante este ano. Mas, como vimos nos últimos anos, há sempre novidades a acontecer”, reforçou Cláudia Azevedo, CEO da Sonae.
“O aumento de preços [para os clientes finais] foi menos de metade do aumento de preços que nos chegou dos produtores. Houve um esforço muito grande de contenção de preços, tanto é assim que tivemos uma quebra de rentabilidade no retalho alimentar em 2023. Este é um mercado competitivo, em que tentamos oferecer o melhor preço”, acrescentou João Dolores no decorrer da apresentação de resultados de 2023 da Sonae.
Pedro Soares dos Santos, na mensagem publicada no relatório e contas de 2023, refere que “o Pingo Doce manteve uma forte atividade promocional durante todo o ano, materializada em 150 folhetos e 79 campanhas, criando oportunidades significativas de poupança para os consumidores, que se traduziram num crescimento de 7,9% das vendas para 4,9 mil milhões de euros e numa margem EBITDA de 5,8%”.
“Em geral, o retalho alimentar em 2023 teve de ajustar os preços em alta fruto do forte inflação alimentar”, refere António Seladas. O analista de ações da AS Independent Research realça que, no caso do Pingo Doce, “a margem operacional (EBITDA) contraiu ligeiramente em 2023, o que significa que uma eventual folga nos custos operacionais (pessoal e fornecimento e serviços externos) que, em geral, subiram abaixo da inflação alimentar, foram anulados pela pressão na margem bruta, que deriva do forte aumento de capacidade no setor (novas lojas das atuais marcas e entrada da Mercadona) e nível de concorrência muito elevado”.
As distribuidoras a operar em Portugal não querem perder quota de mercado e a pressão do novo player (Mercadona) em simultâneo com os programas de expansão de novas lojas e reformulação das lojas atuais, está a criar um ambiente concorrencial anormalmente intenso.
Já no caso da Sonae MC, o analista nota que as contas divulgadas incluem o alimentar e a área de saúde, logo não é possível fazer uma interpretação direta, “mas os resultados finais não deverão ser significativamente diferentes” do Pingo Doce. “Em resumo, as distribuidoras a operar em Portugal não querem perder quota de mercado e a pressão do novo player (Mercadona) em simultâneo com os programas de expansão de novas lojas e a reformulação das lojas atuais, estão a criar um ambiente concorrencial anormalmente intenso”, conclui.
“Os operadores têm de ceder na margem bruta, caso contrário rapidamente perdem quota de mercado”, reforça António Seladas, notando que “no Pingo Doce a margem EBITDA caiu cerca de 90 pontos base nos últimos quatro anos e no caso da Sonae MC cerca de 30 pontos base“. “O principal desafio é basicamente a pressão na margem, que deverá ser combatida com volume. Mas para atrair volume é necessário investir-se em preço e abdicar-se de Margem Bruta”, explica o mesmo analista.
A partir de meados de 2023 notou-se um abrandamento mais forte das margens e nos lucros destas empresas.
Vítor Madeira, analista da XTB, realça que, “inicialmente, estes retalhistas conseguiram incorporar facilmente os aumentos dos preços generalizados nos seus produtos no final de 2022. Contudo, a partir de meados de 2023 notou-se um abrandamento mais forte das margens e nos lucros destas empresas”. “Nesta altura em que os preços começam a estabilizar também as suas margens e lucros parecem começar a estabilizar”, conclui.
“O setor de retalho de distribuição apresentou um positivo impacto dos aumentos de preços, mas analisando as margens das principais cadeias ou insígnias podemos observar alguns sinais de melhoria, embora modestos, sobretudo, nos últimos dois anos”, destaca João Queiroz. O head of trading do Banco Carregosa acrescenta que “este setor possui regulação e existem organismos independentes que monitorizam correta e continuamente como os aumentos dos custos e encargos são refletidos no consumidor final”.
Olhando para 2024, a evolução dos preços espera-se contrária à registada em 2023. “A pressão na margem bruta dever-se-á manter devido à concorrência intensa e agravada pela pressão nos custos operacionais, nomeadamente pessoal a subir nos 5%“, antecipa António Seladas. Para o analista, “sendo que os preços deverão ter ruma evolução flat ou deflação. A única variável que poderá compensar são os volumes a crescer; no entanto, como os retalhistas estão conscientes desse aspeto, deverão fazer fortes campanhas para atrair volume, pressionando a margem bruta”.
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