O que levou a IGF a suspeitar de crime na privatização da TAP?
A auditoria à TAP identificou contratos e operações financeiras sem fundamentação e a ausência de evidência de prestação de serviços, levantando dúvidas quanto à legalidade de pagamentos.
O relatório da auditoria da Inspeção Geral de Finanças (IGF) às contas da TAP revela suspeitas de crime em várias operações realizadas pela companhia aérea portuguesa, nomeadamente no processo de privatização, que terá sido financiado com um empréstimo de 226 milhões de dólares com garantia dada pela própria empresa. O Governo já encaminhou o relatório ao Ministério Público (MP) e à Assembleia da República, após o ter recebido na semana passada.
A auditoria realizada pela IGF, a pedido do então ministro das Finanças Fernando Medina em 2023, na sequência da comissão parlamentar de inquérito à gestão da transportadora aérea, passou a pente fino as contas da TAP no período entre 2005 e 2022, procurando averiguar se “os contratos e acordos objeto da presente auditoria celebrados pelo Grupo TAP estão legalmente suportados e existe evidência dos respetivos fluxos financeiros associados, em termos de suporte documental e do registo contabilístico”.
Num documento com 87 páginas, a IGF levanta dúvidas em relação a várias operações, desde logo o processo de privatização da própria empresa. A auditoria conclui que a compra de 61% da companhia aérea ao Estado, em 2015, por um consórcio (Atlantic Gateway) liderado por David Neelman foi financiada com um empréstimo de 226 milhões de dólares concedidos pela Airbus, numa operação vinculada à compra 53 aviões à Airbus pela TAP. Caso a operadora aérea não finalizasse a aquisição teria que reembolsar os 226 milhões, o que significa que a empresa foi comprada com garantia dada pela própria TAP.
A IGF realça que a “Atlantic Gateway adquiriu 61% do capital da TAP, comprometendo-se a proceder à sua capitalização através de prestações suplementares de capital, das quais 226,75 milhões de dólares foram efetuadas através da sócia DGN com fundos obtidos da Airbus, com base no denominado Framework Agreement, celebrado entre as empresas Atlantic Gateway, a DGN e Airbus, em junho de 2015”, notando uma “relação de causalidade entre a aquisição das ações e a capitalização da TAP, SGPS pela Atlantic Gateway, e os contratos celebrados entre a TAP, SA e a Airbus“.
A assinatura destes contratos “impôs à TAP, SA, a assunção do compromisso de aquisição das 53 aeronaves sem que tivesse meios financeiros para o fazer, sob pena de ser acionada a cláusula de penalização no montante de 226,75 milhões de dólares”.
“Tendo em conta a atividade da Airbus e a sua vertente eminentemente comercial, a disponibilização desse montante parece sugerir que terá sido a contrapartida pela celebração do acordo de renovação da frota, mediante a substituição da encomenda dos aviões Airbus A350 pelos A330, bem como a compra de novos aviões A320neo e A330neo, cujas penalidades pela falta de cumprimento da TAP, SA perfazem exatamente o valor das prestações suplementares de capital assumidas pela Atlantic Gateway, mas que indiretamente terão sido financiadas pelos fundos Airbus (226,75 milhões de dólares)”, reforça o documento, que pode ler aqui.
Daqui pode inferir-se que as prestações suplementares de capital efetuadas pela Atlantic Gateway à TAP, SGPS resultaram de fundos da AIRBUS que a própria TAP, SGPS, através dos contratos celebrados posteriormente com aquela empresa, se comprometeu a pagar.
A IGF conclui que “daqui pode inferir-se que as prestações suplementares de capital efetuadas pela Atlantic Gateway à TAP, SGPS resultaram de fundos da Airbus que a própria TAP, SGPS, através dos contratos celebrados posteriormente com aquela empresa, se comprometeu a pagar, não decorrendo, por isso, diretamente da acionista Atlantic Gateway, mas sim de um terceiro com interesses diretos nos negócios da empresa e através de fundos que posteriormente viria a recuperar mediante pagamentos a que a TAP, SA se vinculou contratualmente (efetuados por via da aquisição das aeronaves ou decorrentes de penalizações por eventuais incumprimentos)”.
Esta operação complexa afigura-se suscetível de contornar a proibição imposta pelo n.º 1 do artigo 322.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), o qual impede que uma sociedade conceda empréstimos ou forneça fundos a um terceiro para que este adquira ações do seu próprio capital, cuja penalidade consiste na nulidade dos contratos ou atos unilaterais que lhe estão subjacentes.
Esta operação terá contornado o código das sociedades comerciais, que impede uma empresa de conceder empréstimos ou fundos a um terceiro para que este compre ações da empresa.
“Esta operação complexa afigura-se suscetível de contornar a proibição imposta pelo n.º 1 do artigo 322.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), o qual impede que uma sociedade conceda empréstimos ou forneça fundos a um terceiro para que este adquira ações do seu próprio capital, cuja penalidade consiste na nulidade dos contratos ou atos unilaterais que lhe estão subjacentes”, refere o relatório.
Ainda em relação ao processo de privatização, a IGF realça que “salienta-se que toda a operação foi previamente apresentada à Parpública e aos membros do Governo das áreas das Finanças e das Infraestruturas”.
Em relação a este assunto, a Parpública destaca que importa distinguir juridicamente a aquisição de ações e a realização de prestações suplementares, uma vez que obedecem a regras e procedimentos distintos”.
Perdas superiores a 900 milhões no Brasil
A IGF afirma ainda que a “racionalidade económica da decisão da administração da TAP, SGPS, de participar no negócio da TAP Manutenção e Engenharia Brasil, SA (VEM/TAP ME Brasil) e, posteriormente, de não partilhar os riscos e encargos daquela participação com a Geocapital – Investimentos Estratégicos, SA não foi demonstrada“.
“Perspetivam-se perdas muito significativas com aquele negócio pela não recuperabilidade dos valores envolvidos, que, até 2023, ascendiam a 906 milhões de euros”, sublinha.
O relatório aponta ainda que “a TAP, SGPS, optou por ficar como acionista única da Reaching Force (e, por essa via, detentora de 90% do capital da VEM) tendo, para o efeito, exercido, em fevereiro de 2007, a call option sobre as ações detidas pela Geocapital (8.500 ações, correspondentes a 85% do capital), mediante o pagamento de um prémio de 20% sobre a totalidade dos valores investidos e incorridos por esta”.
A auditoria conclui ainda que renegociar a parceria com a Geocapital tinha permitido à TAP, SGPS “manter o parceiro, partilhar riscos, investimentos e despesas e evitar o pagamento do prémio de 20% àquela sociedade (nestes termos, o dispêndio da TAP, SGPS no imediato, seria inferior a metade do que veio a ocorrer na sequência da decisão tomada)”.
Pagamento de serviços “simulados” ao CA
As remunerações a membros do Conselho de Administração são outros dos aspetos focados no relatório, com a IGF a identificar discrepâncias entre os valores remuneratórios deliberados pela CV (3.524.922 euros) e os efetivamente cobrados pela Atlantic Gateway (4.264.260 euros), uma diferença de 739.338 euros justificada pela TAP como o resultado da aplicação da Taxa Social Única (TSU) aos valores deliberados em CV, “embora não tenha sido apresentada qualquer evidência que ateste tal justificação”.
“No entanto, mesmo considerando a TSU o valor (4 238 126 euros) é ainda inferior em 26.134 euros relativamente ao faturado”, acrescenta.
“Dados disponíveis levam-nos a concluir que o pagamento das remunerações aos administradores em causa foi efetuado através de um contrato de prestação de serviços simulados (pois aparentemente o fim não era o mesmo para o qual fora celebrado), apresentando-se apenas como instrumental para o efeito pretendido, procedimento que se afigura irregular no pagamento/recebimento das remunerações aos membros do CA, que, assim, eximiram-se às responsabilidades quanto à tributação em sede de IRS e contribuições para a Segurança Social”, refere o relatório, acrescentando que “a entidade auditada não apresentou qualquer fundamentação suscetível de justificar a adoção deste procedimento inadequado.
A TAP pagou ainda a Fernando Pinto, antigo CEO da companhia, 8,5 milhões, entre 2007 e 2020, além de outros benefícios, incluindo 326,7 mil euros por férias não gozadas.
11,7 milhões em consultoria geram dúvida
O relatório conclui ainda que, “entre 2005 e 2022, a TAP, SGPS e a TAP, SA, contrataram serviços de consultoria no montante total de 400,6 milhões de euros, envolvendo cerca de 1.308 entidades, sendo que, nos contratos celebrados com a Seabury Aviation Consulting, LLC e a KPMG & Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, SA, no valor total de 11,7 M€, não foi possível identificar claramente o beneficiário desses serviços”.
O relatório elaborado pela IGF está agora nas mãos do Ministério Público para averiguar eventuais práticas ilegais.
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