BRANDS' ECO “Um terço de toda a comida produzida no mundo é desperdiçada”
Luís Almeida Capão, diretor de ambiente e sustentabilidade na Câmara Municipal de Cascais, aponta alteração de comportamentos como caminho. Desperdício alimentar custa 940 mil milhões por ano.
Quando o tema são as alterações climáticas, a poluição ou o desperdício alimentar, os dados tendem a ser pouco animadores. E não é para menos: todos os anos, são deitadas ao lixo mais de 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos, com um custo económico associado de 940 mil milhões de dólares por ano. “Há comida suficiente no mundo para alimentar toda a gente. Reduzir o desperdício é a forma mais efetiva de cada indivíduo contribuir”, sublinhou Luís Almeida Capão, diretor de ambiente e sustentabilidade na Câmara Municipal de Cascais, durante a conferência da Semana Europeia da Prevenção de Resíduos, que decorreu quinta-feira em Cascais.
A iniciativa, organizada pela Cascais Ambiente com o ECO como media partner, contou com a participação de especialistas e representantes de diferentes setores de atividade, bem como com uma intervenção de Carlos Carreiras. “Acima de tudo, o que estamos todos a discutir é uma alteração comportamental e coletiva. Isso não é fácil de fazer, isso demora o seu tempo”, avisou o presidente da Câmara Municipal de Cascais. Para o autarca, cujo mandato tem sido marcado por uma forte aposta na sustentabilidade do município, é preciso envolver a comunidade em torno deste assunto e mostrar que as consequências da inação afetam todos, incluindo aqueles que nos são mais próximos.
“A grande alteração comportamental é que já começa a afetar as fotografias que temos no móvel da sala. São pessoas reais e aí já há uma relação pessoal”, aponta, identificando esta como uma estratégia que deve ser seguida para mobilizar a população.
Apesar das naturais dificuldades na mudança de comportamentos, quem vive, trabalha e estuda em Cascais tem vindo a aderir às iniciativas de sustentabilidade promovidas pela autarquia. Luís Almeida Capão revelou que, atualmente, cada família produz 23 quilos de resíduos semanalmente, mas este número pode ser drasticamente reduzido. “Sabemos que, se toda a população de cascais realizasse a separação correta de materiais recicláveis e dos biorresíduos, o desperdício destinado a aterros poderia ser reduzido em 83%”, assegurou o responsável. Isto significaria passar de 23 quilos por semana para cerca de quatro quilos.
"Temos de passar a usar a matéria-prima uma, duas, três, quatro vezes. É toda uma alteração de filosofia na utilização de recursos que é preciso mudar”
Emídio Sousa, secretário de Estado do Ambiente, reconhece que “temos um desafio tremendo em Portugal”. “Temos todo o setor dos resíduos numa situação difícil porque vamos ter o esgotamento dos nossos aterros em 2027 e temos toda uma necessidade de encontrar novas soluções”, avisou, lembrando que que é preciso apostar mais na prevenção de resíduos. “Temos de passar a usar a matéria-prima uma, duas, três, quatro vezes. É toda uma alteração de filosofia na utilização de recursos que é preciso mudar”, sugeriu ainda.
Desperdiçar menos, dia após dia
No âmbito da Semana Europeia de Prevenção de Resíduos, Francesco Lembo, secretário-geral a ACR+ – Associação de Cidades e Regiões, explicou que a instituição que representa tem procurado “apoiar a transição para a economia circular e a gestão sustentável na Europa há cerca de 30 anos”. Para Lembo, é crucial implementar “políticas de redução e de consumo” e “quebrar silos” para potenciar a colaboração e, com isso, encontrar novas soluções. Na última edição da iniciativa, em 2023, a associação conseguiu realizar mais de 14 mil ações em 29 países europeus.
O tema do desperdício alimentar foi debatido por um painel de especialistas que juntou Hunter Halder (Refood), Guilherme Gonçalves (MC Sonae Continente), Eduardo Diniz (Comissão Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar) e Fernanda Santos (DECO). Os participantes são unânimes a identificar a sensibilização como uma das medidas em que é preciso insistir mais. “Em termos de educação, há muito interesse por parte das escolas, nomeadamente por via da cidadania. Contudo, acabam sempre por faltar recursos para poder fazer um trabalho maior e com maior envolvimento com a escola”, lamenta a coordenadora do departamento de formação e educação da DECO.
Se com as crianças é facil falar de sustentabilidade e instá-las a alterar comportamentos, “com os adultos há mais dificuldade”. “Tem de haver fortes campanhas informativas sobre serem os consumidores, nas suas próprias casas, responsáveis por mais de 50% dos resíduos”, avisa.
O fundador do projeto Refood – que recolhe excedentes alimentares em restaurantes e outros estabelecimentos semelhantes para depois entregar a quem precisa – diz, porém, que “há uma evolução considerável nas pessoas e nas empresas” desde o início da iniciativa. Existe, porém, espaço para melhorar: desde logo no alcance da entidade, que está apenas em 62 freguesias nacionais, e também num sistema que “desincentive deitar fora comida e incentive a doação”.
Na distribuição, também se verificou uma evolução. Guilherme Gonçalves, gestor de projetos de I&D e Inovação da Sonae MC Continente, lembra as já conhecidas “etiquetas cor-de-rosa” que identificam produtos perto do final da validade e os vendem com desconto. “A Sonae foi das primeiras empresas no mundo a usar estas etiquetas. No ano passado, doámos o equivalente a 30 milhões de euros em produtos a entidades como a Refood”, destacou ainda.
“O peixe e a carne são produtos mais difíceis de doar porque têm responsabilidade associada”, assinalou Eduardo Diniz. O responsável pela Comissão Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar recordou que o país está obrigado, no seio da União Europeia (UE), a reduzir o desperdício alimentar e que é preciso investir para conseguir fazê-lo. “O nosso melhor sucesso é acabarmos com os nossos cargos”, apontou.
Quanta comida deitou fora hoje?
A resposta à pergunta surpreenderia pela realidade dos números, que indica que “Portugal é, neste momento, o terceiro país da UE em que se regista maior desperdício alimentar”. Sara Correia, engenheira ambiental da Associação Zero, diz que cada português deita fora, anualmente, cerca de 184 quilos de comida, um valor acima da média europeia (132 quilos/habitante/ano). “Enquanto uns desperdiçam muito, outros não têm a possibilidade de ter duas refeições diárias”, critica. As metas da UE são claras: reduzir 55% até 2025, 60% até 2030 e 65% até 2035.
A Zero juntou-se à iniciativa internacional Zero Waste, que tem como objetivo a promoção da economia circular e “conservar e recuperar os recursos” sempre que possível. A associação está a apoiar tecnicamente as cidades que queiram aderir e ostentar o selo Lixo Zero, ficando obrigadas ao cumprimento de objetivos para 2030. “Há um processo de pré-certificação que demora três anos”, explicou.
Prevenir é palavra de ordem
A prevenção de resíduos é uma das preocupações centrais da Smart Waste Portugal, representada no evento pela sua diretora-executiva, Luísa Magalhães. “Do lado da indústria, sentimos que temas como o eco design estão na ordem do dia. A questão do passaporte de produtos e materiais é uma questão que também preocupa”, assinalou durante o painel dedicado a este tema. Participaram ainda Luís Almeida Capão, Nuno Soares (Tratolixo) e Pedro Nazareth (Electrão).
“Passámos a recolher unidades [de equipamentos elétricos e eletrónicos] na casa do cidadão, identificando o seu estado de operação, o que nos permite fazer inspeção e verificação. Alguns desses equipamentos estão a ser utilizados”, assegura Nazareth. Só este ano, a empresa já contabilizou 500 toneladas de equipamentos que passaram pelo seu centro de reutilização. A par deste novo projeto, surgiu recentemente o ondedoar.pt, uma plataforma que faz “encontrar a oferta e a procura para bens doados”, fazendo com que cheguem a instituições de solidariedade social.
Ainda no digital, a Smart Waste Portugal tem um marketplace online para resíduos e subprodutos, a MyWaste, mas a tarefa não tem sido fácil “por causa das barreiras culturais”. Já a Vidro+ é uma ferramenta que tem como objetivo promover a circularidade das embalagens de vidro em Portugal, uma área em que o país compara mal com a Europa. “O vidro tem um problema enorme, porque a nível de recolha e reciclagem está muito abaixo da média europeia”, afirma Luísa Magalhães.
A Tratolixo – que tem operações de recolha seletiva em Cascais, Oeiras, Mafra e Sintra – iniciou um projeto com os quatro municípios onde tem presença para a recolha seletiva de biorresíduos, que passou a ser obrigatória desde o início do ano. “Os biorresíduos são 55% daquilo que recolhemos”, aponta Nuno Soares, que explica que esta iniciativa permite poupar dinheiro aos cofres públicos e emissões de CO2 para o planeta. “As poupanças para os quatro municípios são na ordem dos cinco milhões de euros por ano”, aponta, o que se traduz em menos 300 mil metros cúbicos de água gasta, menos 850 mil litros de combustível e menos 2,2 milhões de quilos de CO2.
Comunicar pela positiva
Mudar comportamentos implica tempo, mas há fatores que podem contribuir para uma transmissão mais eficaz de mensagens relacionadas com a sustentabilidade, assegura Catarina Barreiros. A fundadora e CEO da Loja do Zero sugere que se “desligue a superioridade moral” quando se fala de assuntos ambientais, mas também que se seja muito transparente e suportado por factos. “Quando somos demasiado otimistas podemos deixar de conferir à pessoa que está a ouvir a importância da ação. Não podemos dizer “o mundo está a arder, mas não faz mal porque temos extintores””, afirma a ativista.
Para Catarina Barreiros, é fundamental que empresas e instituições procurem envolver a comunidade na jornada da sustentabilidade, explicando as medidas que tomam e, sobretudo, as razões que levaram a essa decisão. “Quando somos radicalmente transparentes, damos às pessoas uma oportunidade de compreenderem o nosso lado”, acredita.
Assista o vídeo na íntegra aqui:
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