“Somos irrelevantes.” Portugal sem dimensão para sofrer impacto dos limites à compra de chips para IA

Novos limites dos EUA à venda de placas gráficas para IA abrangem Portugal, mas isentam Espanha e outros países europeus. Há impacto reputacional, mas falta de escala limita ou anula efeito da medida.

Restrições dos EUA afetam placas gráficas essenciais para treinar os novos modelos de inteligência artificialPixabay

As novas restrições dos EUA à exportação de placas gráficas usadas no treino de modelos de inteligência artificial (IA) irão abranger Portugal, mas terão um impacto muito limitado ou até nulo nas empresas e noutras instituições portuguesas, que não adquirem estes equipamentos numa escala relevante, apurou o ECO junto de fontes do setor. No entanto, o facto de o país não ter sido incluído na lista de 18 “aliados e parceiros-chave” dos EUA ameaça causar um dano reputacional na imagem que Portugal projeta no exterior.

A 13 de janeiro, a anterior Administração americana apertou pela terceira vez os controlos à exportação de certas tecnologias para tentar travar o avanço de países hostis em áreas críticas como a IA. As novas restrições incluem três níveis. No patamar mais apertado, as exportações de algumas placas gráficas da fabricante norte-americana Nvidia para países como a China ficam proibidas. No nível intermédio, países como Portugal, Suíça e Israel passam a estar sujeitos, entre outros aspetos, a limites máximos na compra destes componentes.

Ora, a equipa do ex-Presidente Joe Biden também isentou 18 parceiros destas restrições. Um benefício dado a praticamente todos os países da União Europeia (UE) mais próximos de Portugal, incluindo a vizinha Espanha, bem como ao Reino Unido. Nenhuma das fontes ouvidas pelo ECO conseguiu explicar porque é que a economia portuguesa foi visada nestas restrições dos EUA, sendo que já estarão a ser feitos esforços diplomáticos para compreender os motivos desta decisão, de acordo com uma outra fonte familiarizada com o assunto.

Um dano reputacional será, talvez, a grande consequência para Portugal das restrições norte-americanas à compra de chips. Do ponto de vista prático, o limite de 50 mil placas gráficas a que o país passa a estar sujeito, bem como a possibilidade de duplicar este valor mediante uma autorização especial prevista na medida, não deverá ter nenhum impacto relevante dado que as organizações portuguesas estão muito longe de conseguir, sequer, importar essas quantidades.

“No essencial, são limitações para Portugal adquirir máquinas, placas de processamento gráfico, com tecnologia americana. Aqui, a Nvidia é absolutamente central. Estamos a falar de uma restrição que não nos permite adquirir mais do que 50 mil GPU [Graphics Processing Units, vulgo placas gráficas], com facilidade até 100 mil GPU”, sintetiza Rui Oliveira, diretor do Centro de Computação Avançada do Minho (MACC), onde se encontra instalado o supercomputador português Deucalion.

Desde logo, dando como exemplo as placas Nvidia H100, o investigador explica que estes componentes são, atualmente, “dificílimos de comprar”, visto ser um dos modelos mais avançados e procurados na atual corrida da IA a nível mundial. “Está toda a gente à espera. Há centros de computação na Europa que já compraram e continuam à espera”, revela Rui Oliveira.

Além disso, não são baratos: “Cada GPU destes, grosso modo, custa 40 a 50 mil dólares. Façamos as contas e perceberemos que, na dimensão objetiva e substancial da restrição, isto é de facto uma não restrição” para a realidade portuguesa.

Para colocar os números em perspetiva, o Deucalion, o supercomputador português, tem aproximadamente 130 GPU. Ademais, um dos modelos de IA da DeepSeek, a startup chinesa de IA que abanou os mercados financeiros no final de janeiro, foi “treinado em 50 mil GPU da Nvidia, mas os H800, na prática duas gerações atrás dos H100”, diz o também diretor do INESC TEC.

“Estamos a falar de quantidades de GPU que não estão ao alcance dos supercomputadores europeus”, reitera. “Contas por alto, nós só iríamos sofrer a restrição se investíssemos metade do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]” em placas da Nvidia, diz o diretor.

No dia em que [alguém em] Portugal comprasse 1.000 placas gráficas H100, era notícia em toda a comunicação social. Os responsáveis seriam entrevistados.

Rui Oliveira

Diretor do Centro de Computação Avançada do Minho (MACC)

Esta informação é corroborada por Luís Sarmento, cofundador e CEO da Inductiva AI, uma empresa portuguesa que aplica métodos de machine learning e computação avançada na realização de simulações: “Não existe propriamente em Portugal nenhuma empresa que esteja a comprar esse hardware em escala”, assegura o gestor.

Salientando que “praticamente todo o hardware para IA” adquirido pelas empresas empresas portuguesas é feito em “pequena escala”, Luís Sarmento diz que as empresas nacionais compram, “eventualmente, às dezenas, ou uma dezena destes GPU, como os H100, que são dos mais caros e que até vêm nuns bastidores com oito de cada vez”. “Mas isso já seria uma compra de uns 200 a 300 mil euros. Não há assim muitas instituições em Portugal a gastarem assim 300 mil euros”, diz.

“Em suma, esta restrição, na realidade, não nos afeta assim tanto. Não há nenhum projeto que vai parar. Se calhar alguns terão de gastar mais dinheiro, mas ninguém está aqui a encomendar 50 mil GPU, ou dez mil, ou mil”, reforça Luís Sarmento, apontando, por exemplo, para grandes projetos de construção de data centers no país. Questionado sobre se quer isto dizer que Portugal é irrelevante no mapa internacional da IA, o gestor responde que sim: “Somos praticamente irrelevantes.” “Essa é a discussão interessante: porque é que nós somos irrelevantes, porque somos. Neste momento não temos capacidade interna para sermos altos consumidores de GPU”, diz.

A restrição terá, no entanto, outros efeitos, incluindo um “mais pernicioso”, de empurrar ainda mais as empresas para soluções na cloud oferecidas por empresas americanas: “Eu vejo estas restrições como uma certa tendência para o favorecimento dos fornecedores atuais, via cloud, enaltece. Não será, contudo, o principal.

Reputação de Portugal em risco

Apesar do baixo impacto direto no mercado, a decisão dos EUA de não isentar Portugal destas limitações já está a ter consequências políticas, ainda que difíceis de avaliar.

“A perceção criada quando se publica um mapa europeu onde está tudo pintado da mesma cor, menos Portugal e países já mais remotos, em que todos os seus vizinhos não têm restrições, levanta aqui a questão de ‘o que é que se passa, porquê Portugal?'”, alerta o diretor do MACC, Rui Oliveira.

“Do ponto de vista da perceção na fotografia, é pena, é preocupante, ou pelo menos sempre estranho. E faria sentido percebermos nessa perspetiva a parte mais política. Isso acaba por ter reflexos comerciais, não necessariamente nos GPU, mas na imagem que isso passa”, afirma o investigador. E, apesar de não conseguir apontar a causa exata, sugere que a única coisa que se pode dizer é que a decisão define Portugal como “um país de menor confiança nesse aspeto, onde, provavelmente, o controlo da informação e da propriedade intelectual será inferior”.

O ECO enviou um conjunto de questões ao Governo, através do Ministério da Juventude e Modernização, dado que a ministra Margarida Balseiro Lopes tem a tutela de todas as questões relacionadas com IA, e também já tentou questionar o Ministério da Economia sobre a matéria, para conhecer a posição oficial do Governo português, mas sem sucesso até à publicação desta notícia.

Nós devíamos estar agora muito preocupados porque isto vai ter um grande impacto em nós, mas infelizmente não vai ter grande impacto. E isso é que é triste.

Luís Sarmento

Cofundador e CEO da Inductiva AI

“Porque é que o ChatGPT não nasceu em Portugal?”

“A grande discussão que se coloca é porque é que nós não somos uma potência de IA. E ninguém tem coragem de fazer esta pergunta”, diz Luís Sarmento, para quem Portugal é “um país que cronicamente está atrasado” ao nível tecnológico, levantando mesmo outra questão, referindo-se à plataforma de IA generativa da empresa norte-americana OpenAI: “Porque é que o ChatGPT não nasceu em Portugal?”

“Demos um grande salto do ponto de vista de educação, e isso deu-nos recursos humanos, mas as organizações que depois poderiam absorvê-los não têm um perfil tecnológico”, diz, diagnosticando: “O grande problema é que o nosso perfil económico é um perfil que é muito difícil de se tornar tecnológico”, com uma “indústria mid-tech”.Toda a nossa indústria é uma indústria de baixa incorporação tecnológica, que não tem interesse nenhum em desenvolver-se tecnologicamente para além do óbvio, de ter o Windows a correr e pouco mais”, indica.

“Era preciso dar aqui uma volta muito grande. Os recursos existem. Eu acho que parte do contexto existe. O que não está a existir é um ecossistema de empresas inovadoras, pequenas. Nós devíamos estar a focar-nos era em como é que pegávamos neste talento todo e o vocacionávamos para empresas de pequena e média dimensão”, remata Luís Sarmento.

As restrições desenhadas pela Administração Biden contemplam um período de 120 dias até entrarem em vigor, prazo que terminará em meados de maio. Foi a forma encontrada pelo anterior governo norte-americano para permitir eventuais alterações por parte da equipa do novo Presidente Donald Trump.

Ao nível de políticas públicas em Portugal, o Governo está a desenhar uma Agenda Nacional de IA que irá apresentar em breve. Enquanto isso, está a ser desenvolvido um grande modelo de linguagem português, chamado Amália, por entidades públicas, num investimento de 5,5 milhões de euros. Está previsto ser lançado no final do primeiro trimestre.

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