Das licenças às discrepâncias regionais: a “guerra” que Portugal tem de travar à burocracia

País tem recebido alertas de Bruxelas sobre entraves burocráticos e o Banco Mundial conclui que peca na eficiência operacional. Há cidade digitais e outras onde é preciso entregar documentos em papel.

O primeiro-ministro considera que o excesso de burocracia é o “primeiro” constrangimento que limita a capacidade de crescimento do país. No discurso de tomada de posse, Luís Montenegro declarou “guerra” ao “excesso de burocracia, regras, morosidade das decisões e falta de agilidade do Estado”, tendo criado um novo Ministério da Reforma do Estado. Mas Portugal é assim tão burocrático? A resposta dos grupos empresariais é “sim”. O que dizem os dados? Segundo o Banco Mundial, além das discrepâncias regionais, Portugal está na 15.º posição em termos de eficiência operacional numa lista de 50 países onde não entram sequer as maiores economias da Zona Euro.

Portugal foi uma das 50 economias escolhidas pelo Banco Mundial para dar o pontapé de saída no seu novo projeto Business Ready, que sucede ao Doing Business e avalia o ambiente de negócios e investimento em todo o mundo. À primeira vista, as conclusões foram positivas: 2.º lugar em termos de framework regulatório (78.11 pontos), 4.º nos serviços públicos (69.53) e 15.ª posição na eficiência operacional (70.53 pontos), mas importa realçar que o relatório, lançado em outubro, (ainda) não analisou as maiores economias europeias. Portugal foi colocado numa tabela composta pela Hungria, Eslováquia, Geórgia, Bulgária, Roménia, Grécia, Croácia, Estónia, Montenegro e nações asiáticas ou da América Latina.

Por sua vez, o EY Attractiveness Survey concluiu que Portugal teve uma pausa no crescimento pós-pandemia em 2023, embora mantenha a perspetiva de Portugal como um destino de investimento “estável”, continuando entre os dez mais atrativos da Europa para Investimento Direto Estrangeiro (IDE).

Reformas em curso, da Segurança Social às renováveis

Sob a chancela do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), existem várias reformas em curso ou até cumpridas para combater a burocracia, nomeadamente a introdução de um sistema permanente de acompanhamento e avaliação de todos os benefícios fiscais; a implementação de novos modelos de planeamento, monitorização e controlo das compras públicas (numa lógica de gestão da despesa consoante as suas características e não apenas os limites financeiros) e um balcão único para o licenciamento de projetos de renováveis.

Ainda esta semana a Comissão Europeia alertou que Portugal está ‘afundar-se’ em burocracia, porque quase metade (48,8%) das empresas portuguesas declararam que a regulamentação empresarial é “uma barreira fundamental ao investimento”, o que compara em alta com as 32% da média da União Europeia, segundo a informação do Banco Europeu de Investimento.

Bruxelas assinala também que estes formalismos — ou ‘papelada’ em demasia — são um travão ao desenvolvimento dos projetos de energias renováveis no país. “As ambições de energia renovável de Portugal são prejudicadas por um processo de licenciamento complexo e demorado”, informam os técnicos do executivo comunitário.

O Banco Mundial deixa ainda sugestões no contexto das reestruturações: “É importante prestar mais atenção ao número de administradores de insolvência em todas as regiões, bem como desenvolver ferramentas digitais para melhorar a gestão dos processos à distância, quando as circunstâncias não permitem reuniões presenciais com os credores. Em segundo lugar, o reforço da transparência e da responsabilização dos administradores de insolvência pode melhorar a sua eficiência e reduzir os atrasos processuais”, apela a organização.

No sistema de Segurança Social, há uma reforma do PRR que está em execução e ficará concluída até 30 de junho de 2026 que passa por simplificar, através de uma prestação social única (consolidar, no mínimo, oito de caráter não contributivo, incluindo o Rendimento Social de Inserção), e criar um código que harmoniza a legislação que rege as prestações sociais. A Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR recomenda até a redução do número de regimes contributivos para que os processos da Segurança Social possam ser mais simples, tendo em conta que cada pessoa, ao longo da carreira contributiva, pode passar por vários regimes.

Regras diferentes consoante a cidade

Ademais, o país anda a diferentes velocidades. Por exemplo, a eficiência com que as ligações de eletricidade podem ser obtidas varia muito em termos de tempo e de custos de cidade para cidade: Lisboa tem a mais rápida (100 dias), enquanto em Ponta Delgada a ligação demora até 133 dias.

a obtenção de uma ligação de água é mais rápida em Braga (31 dias) mais lenta em Évora e Lisboa (65 dias), o que tem implicações na rotina das pessoas e nos escritórios das empresas. Ainda que exista uma preocupação com a uniformização a nível nacional, o mesmo acontece com o preço dos litígios (custas judiciais e honorários dos advogados), cujo intervalo vai de 2,6% do valor da ação no Funchal até 11,8% no Porto.

Quanto às licenças de construção, o relatório mostra que as grandes metrópoles — Lisboa e Porto — lideram na oferta de plataformas eletrónicas de licenciamento completas, contudo as mesmas não existem ou são “rudimentares” em Évora, Faro e Funchal, exigindo a entrega de documentos em papel, por email ou numa pen USB.

As empresas das mais variadas indústrias têm alertado ininterruptamente para a necessidade e importância de desburocratizar. Por exemplo, o vice-presidente da CIP – Confederação Empresarial de Portugal e vice-presidente da AIMMAP – Associação dos Industriais Metalúrgicos, Metalomecânicos e Afins de Portugal pretende que o licenciamento industrial seja mais fácil e organismos como a AICEP e o Compete se tornem mais ágeis.

Um dos três eixos de atuação da associação Business Roundtable Portugal (BRP) é precisamente o Estado, além das pessoas e empresas. Dentro dessa linha mestra, os 43 grupos económicos que compõem a BRP identificam a burocracia como problemática a corrigir. “A simplificação dos processos administrativos e de licenciamento é essencial para permitir o dinamismo necessário ao crescimento económico. Sabemos que a complexidade e a falta de celeridade retiram previsibilidade às empresas e são por isso entraves ao investimento”, considera a associação, que tem um grupo de trabalho para esta área liderado pelo vice-presidente da BRP e presidente do BCP, Nuno Amado.

A organização elogia algumas medidas no âmbito dos pacotes legislativos de simplificação, nomeadamente o diferimento tácito ou a eliminação de licenciamentos desnecessários na área do ambiente (Simplex Ambiental), porém declara que é preciso “ir mais longe”.

Estes empresários declaram que “Portugal é ainda um país muito burocrático, apesar do esforço de simplificação administrativa”. De facto, ainda na anterior legislatura, o programa de desburocratização Simplex funcionou como uma espécie de pacto de regime, uma vez que até o nome se manteve do Governo de António Costa para o de Luís Montenegro. A diferença foi uma alteração no foco – da eficiência interna da Administração Pública para o quotidiano das pessoas e a atividade das empresas – e no número de medidas, que foram reduzidas para evitar que a maioria fique na gaveta.

Entre as 15 medidas de desburocratização apresentadas no último verão estava a existência de um único ponto de entrada em cada canal (presencial, online, aplicação móvel e linha telefónica) para as empresas saberem que têm uma porta onde iniciar o serviço, mesmo que não saibam onde ou por que entidade é feito.

Outra das dores de cabeça dos empresários é a interoperabilidade dos sistemas que faz com que, por diversas vezes, o Estado peça informações às empresas que o próprio Estado já tem — ou já recebeu noutra fase prévia. O Portal Nacional de Fornecedores do Estado (PNFE), no âmbito da contratação pública, tem sido um dos exemplos em que, mesmo servindo para agilizar os contratos, acabava por solicitar documentação repetida antes ou durante as adjudicações.

O diferencial entre serviços disponíveis para o cidadão e para as empresas é significativo e está quantificado. Portugal ocupa apenas o 20º lugar do ranking da União Europeia na disponibilização de serviços digitais para as empresas, enquanto para os cidadãos está na 12º posição, de acordo com os dados do Índice de Digitalidade da Economia e da Sociedade (IDES) de 2024.

Esta quinta-feira, perante o Presidente da República, antigos e atuais governantes e oposição, Luís Montenegro mostrou-se empenhado em combater este género de ineficiências. “Quero declarar hoje, aqui solenemente, guerra à burocracia. À falta de capacidade de articulação entre organismos públicos, à demora nas respostas às solicitações das pessoas, das instituições e das empresas. Ao excesso de regulamentação e à cultura de quintal de muitas entidades, funcionários e dirigentes”, afirmou o primeiro-ministro recém-empossado, referindo-se à procedimentos administrativos que bloqueiam o desenvolvimento.

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