“Partido da América” de Musk: mais um terceiro partido sem sucesso ou uma ameaça real ao bipartidarismo nos EUA?
Não se sabe se o multimilionário vai mesmo avançar com a formalização do partido. Analistas questionam que consiga penetrar no sistema norte-americano, mas reconhecem recursos sem precedentes de Musk.
Semanas após a desavença pública com Donald Trump, motivada por um desacordo com a “One Big Beautiful Bill”, Elon Musk disse que vai criar um novo partido político com o objetivo de reduzir a dívida pública dos EUA, atualmente nos 37 biliões de dólares. O multimilionário dono da Tesla e da SpaceX apresentou o Partido da América (America Party, em inglês) como um desafio ao sistema bipartidário norte-americano.
O anúncio foi feito através do X (antigo Twitter, que Musk comprou em 2022), depois de o líder da Casa Branca ter assinado um pacote legislativo que, segundo as estimativas, vai agravar a já elevada dívida pública do país em mais de 3 biliões de dólares ao longo da próxima década.
No próprio dia em que a polémica lei foi promulgada, 4 de julho, feriado do Dia da Independência nos EUA, o empresário realizou uma sondagem na rede social em que perguntava aos seus seguidores se apoiavam a criação de um novo partido. Dos mais de 1,2 milhões de votantes, 65,4% responderam que sim.
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No dia seguinte, fez uma nova publicação em que declarava que o partido estava formado: “Quando se trata de levar o nosso país à falência com desperdício e corrupção, vivemos num sistema de partido único, não numa democracia. Hoje, o Partido da América está formado para vos devolver a vossa liberdade.”
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Ainda noutra publicação no X, propôs a realização de um Congresso do Partido da América em agosto, em Austin, no Texas, sugerindo que o partido entrará na corrida das eleições intercalares de 2026 e que estará focado “em apenas dois ou três assentos no Senado e 8 a 10 distritos da Câmara dos Representantes”, de modo a negar uma maioria no Congresso quer aos republicanos, quer aos democratas e, assim, servir como voto decisivo em leis contenciosas.
Sem oferecer grandes detalhes sobre a ideologia do partido, disse apenas que quer que seja pró-energia e centrista, fiscalmente conservador e que controle os gastos, devendo incluir a promoção do desenvolvimento de tecnologia baseada em inteligência artificial e uma desregulamentação abrangente. Em matérias sociais, o bilionário tem ideias próximas às do Presidente dos EUA. Além disso, também não revelou quem vai liderar o partido — como Musk nasceu fora dos Estados Unidos, não pode candidatar-se à Casa Branca.
Mas, para já, não é claro se Musk tomou medidas no sentido de registar formalmente o partido junto da Comissão Eleitoral Federal (FEC, na sigla em inglês), que não publicou quaisquer documentos que comprovassem que isso tenha acontecido. De acordo com os regulamentos da FEC, os novos partidos políticos não precisam de se registar formalmente, a não ser que a sua angariação de fundos ou as suas despesas excedam um limite específico. Tendo em conta que Musk é o homem mais rico do mundo, o financiamento não deverá ser um fator limitativo para a criação do Partido da América.
O empresário já tinha levantado a hipótese de formar um partido durante a sua contenda pública com o Presidente norte-americano, que o levou a deixar a liderança do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) em maio e a envolver-se numa discussão acesa nas redes sociais com o seu outrora aliado, de cuja campanha para as eleições presidenciais de novembro passado foi o maior doador individual, contribuindo com mais de 290 milhões de dólares.
As críticas de Musk à agenda política de Trump, que apelidou de “escravatura da dívida”, foram o catalisador da desavença entre ambos no mês passado. Embora tenha, aparentemente, arrefecido, depois de o multimilionário ter-se dito arrependido de algumas das publicações que fez, a discussão reacendeu-se nos últimos dias à medida que o projeto de lei se aproximava de receber a ‘luz verde’ do Congresso.
Criar um terceiro partido é “ridículo”
Trump não tardou a reagir ao anúncio de Musk. “Penso que é ridículo criar um terceiro partido. Temos um enorme sucesso com o Partido Republicano. Os democratas perderam o rumo, mas sempre foi um sistema bipartidário, e acho que começar um terceiro partido só aumenta a confusão“, afirmou o líder da Casa Branca, antes de embarcar no Air Force One em Nova Jersey no passado domingo. “Os terceiros partidos nunca funcionaram, por isso ele pode divertir-se com isso — mas eu acho que é ridículo“, reforçou.
Mais tarde, na sua rede social Truth Social, o Presidente dos EUA voltou a atacar o seu antigo “braço direito”, descrevendo-o como “fora dos trilhos”.
Já no início desta semana, Trump ameaçou cortar os milhares de milhões de dólares em subsídios que as empresas de Musk recebem do Governo federal e descreveu o DOGE, que o bilionário anteriormente dirigia, como um monstro que pode “voltar e comer Elon”.
“Elon pode receber mais subsídios do que qualquer ser humano na história, de longe. Sem subsídios, teria provavelmente de ‘fechar a loja’ e regressar a casa na África do Sul”, escreveu Trump na Truth Social.
Os efeitos do anúncio de Elon Musk e da sua disputa com Donald Trump, muitas vezes descrita como sendo entre o homem mais rico do mundo e o homem mais poderoso do mundo, fizeram-se sentir junto dos investidores.
Só o preço das ações da Tesla, que começou a disparar após a vitória de Trump em novembro, até atingir um máximo de mais de 488 dólares em dezembro, perderam mais de metade do seu valor em abril, para os 221 dólares. Nesta sexta-feira, negociavam nos 311,51 dólares.
Além disso, na segunda-feira, a empresa de investimentos Azoria Partners disse que iria adiar a admissão à cotação de um fundo Tesla negociado em bolsa, com o diretor executivo, James Fishback, a pedir ao conselho de administração da fabricante de veículos elétricos que esclareça as ambições políticas de Musk. Para Fishback, o novo partido mina a confiança dos acionistas de que o bilionário se iria concentrar mais nas suas empresas depois de deixar o DOGE.
Pouco sucesso dos terceiros partidos nos EUA
Apesar dos bolsos fundos de Elon Musk, quebrar o duopólio republicano-democrático é uma tarefa difícil, uma vez que este tem dominado a política norte-americana durante mais de 160 anos. E, embora o sistema bipartidário seja há muito tempo criticado tanto por democratas como por republicanos, os esforços para formar um terceiro partido têm tido pouco sucesso.

Na verdade, a única vez que esses esforços terão sido bem-sucedidos foi com a formação do próprio Partido Republicano, que teve origem como um terceiro partido na década de 1850. Foi a eleição de Abraham Lincoln em 1860, que continua a ser o único candidato de um então terceiro partido a ganhar umas presidenciais, que solidificou a posição do Grand Old Party.
Outros tentaram e falharam desde então, incluindo o antigo Presidente Theodore Roosevelt, cujo Partido Progressista (mais conhecido pela sua alcunha, o “Partido do Alce Touro”) teve um sucesso de curta duração nas eleições de 1912, mas caiu dois anos depois.
Mais recentemente, o bilionário Ross Perot, também crítico do défice orçamental federal, como Musk, candidatou-se à Casa Branca por duas vezes: a primeira, como independente, em 1992, tendo obtido quase um quinto do voto popular, mas não conseguiu eleger nenhum Estado; e a segunda em 1996, como candidato de um terceiro partido, o seu Partido da Reforma, em que teve apenas 8% dos votos.
O próprio Donald Trump chegou a equacionar entrar na corrida às eleições de 2000 como candidato de um terceiro partido, no âmbito do Partido da Reforma criado por Perot. Mas, apesar de ter aderido ao partido e de ter ganhado as primárias na Califórnia, acabou por desistir após concluir que o partido não lhe dava o apoio de que necessitaria para vencer as eleições gerais.
Ainda em novembro passado, candidatos de partidos como o Partido Libertário, o Partido Verde e o Partido Popular tentaram em vão impedir a vitória de Trump ou da sua rival democrata, Kamala Harris.
Isto demonstra como é difícil ganhar popularidade nacional suficientemente forte para representar uma ameaça real aos partidos já cimentados na cena política norte-americana, além de que é financeira e legalmente difícil criar um novo partido, e os próprios eleitores e possíveis candidatos hesitam em aderir.
“Existem barreiras muito, muito significativas para a criação de um terceiro partido viável”, tais como a construção de infraestruturas partidárias, a organização de voluntários e a qualificação para o voto, disse David A. Hopkins, professor de Ciências Políticas do Boston College, citado pela Reuters.
Os candidatos presidenciais têm de se apresentar às urnas em cada Estado individualmente, sendo que muitos Estados exigem dezenas de milhares de assinaturas de eleitores elegíveis durante o período de campanha — já para não falar dos recursos necessários para montar uma campanha a nível nacional.
“Os partidos existentes têm muita força. Têm muita experiência, dinheiro e já estão lá. Por isso, é muito difícil penetrar neles“, notou Julian Zelizer, professor de História e Assuntos Públicos na Universidade de Princeton, citado pela revista Foreign Policy. Os democratas e os republicanos também tendem a ajustar as suas plataformas partidárias para absorver as melhores ideias de potenciais adversários. “É muito difícil para um terceiro partido ultrapassar isso — se o gigante na sala fizer o que está a prometer fazer, as pessoas vão muitas vezes escolher essa opção”, acrescentou.
Zelizer dá conta também de um comportamento enraizado dos eleitores: “Mesmo que se queixem dos partidos, mesmo que falem de outro partido, acabam por se sentir confortáveis no dia das eleições, votando num dos dois que existem. A frustração que as pessoas demonstram é muitas vezes retórica e não na forma como votam.”
Existem barreiras muito, muito significativas para a criação de um terceiro partido viável.
Polarização e recursos de Musk como fatores diferenciais
Apesar destes desafios, nenhum candidato independente ou terceiro partido teve os recursos que Elon Musk, o homem mais rico do mundo, tem à sua disposição. Além disso, ele já mostrou que pode conseguir alcançar os seus objetivos na política contribuindo apenas com grandes quantidades de dinheiro.
Se começar por disputar eleições mais a nível local, focando-se em alguns lugares das duas câmaras do Congresso, tal como deu a entender, tem mais possibilidades de ter sucesso, segundo os analistas.
Ao mesmo tempo, a polarização política atual nos EUA pode ajudar a que um novo partido penetre o sistema bipartidário. “Estamos num período em que os partidos parecem estar mais quebrados do que pensamos. Como vemos com o sucesso de Trump, as coisas estão diferentes — não sabemos exatamente porquê, mas talvez haja vulnerabilidades que ainda não vimos e, quando encontram alguém com tantos recursos, podem ser desafiados“, afirmou Zelizer.
Embora o professor da Universidade de Princeton continue cético quanto à possibilidade de Musk ultrapassar os constrangimentos históricos e sistémicos que frustraram as tentativas de terceiros partidos no passado, reconhece que as capacidades do empresário são sem precedentes e imprevisíveis: “Nunca tivemos um único indivíduo com tanto dinheiro e que parecesse disposto a gastar muito dinheiro”.
Adicionalmente, o facto de Musk ser proprietário da rede social X e ter uma base de 222 milhões de seguidores também lhe dá o tipo de megafone global que nenhum candidato conseguiu ter.
O que pode complicar os planos do multimilionário é o facto de muitos eleitores não gostarem dele. De acordo com uma sondagem de junho da Reuters/Ipsos, Musk é visto de forma menos favorável do que Trump pela generalidade do público norte-americano, contando apenas com a opinião favorável de 36% dos inquiridos, o que compara com 42% que veem o Presidente dos EUA de forma favorável, enquanto 59% têm uma opinião desfavorável sobre Musk e 55% veem Trump de forma desfavorável.
Nunca tivemos um único indivíduo com tanto dinheiro e que parecesse disposto a gastar muito dinheiro.
A maior desvantagem, ainda assim, pode ser o facto de a sua base de apoio ser constituída por próprios eleitores do republicano. Aliás, na sondagem da Reuters, Musk teve o seu nível de apoio mais forte (78%) junto das pessoas que votaram em Trump em novembro.
“O próprio Musk não é muito popular, e o seu apelo tem uma enorme sobreposição com a coligação republicana existente. Não há realmente um movimento não representado pelo qual ele esteja a falar… É improvável que ele eleja muitos candidatos do Partido da América”, disse Hans Noel, um cientista político da Universidade de Georgetown.
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