O “milagre” nas contas públicas
O que se passou na execução de 2016 não foi um 'milagre', foi malabarismo orçamental puro e duro. Mas Teodora Cardoso não disse apenas a expressão, também explicou como foi possível lá chegar.
Na semana passada o tema das Finanças Públicas, matéria árida e porventura pouco dada a emoções, entrou no domínio do sobrenatural e do religioso. Isto porque a Drª Teodora Cardoso, presidente do Conselho de Finanças Públicas (CFP), usou o termo “milagre” para definir o que se passou em 2016 em termos de execução orçamental. Teria sido um “milagre” termos conseguido chegar aos 2,1%.
Logo de seguida várias pessoas insurgiram-se contra a Drª Teodora. Desde o senhor Presidente da República, que achou por bem lembrar que milagres só os de Nossa Senhora de Fátima, até às reações mais desbragadas do primeiro-ministro (dizendo que o CFP é que tinha falhado as suas previsões em toda a linha) e do PCP, que pela voz de um “pequeno Beria”, veio dizer que “milagre” era a Drª Teodora ter emprego e salário (noutros tempos o “milagre” seria a Drº Teodora não ir parar a um Gulag ou simplesmente levar com um tiro na nuca nas caves de Lubianka).
Importa antes de mais perceber que a Drº Teodora preside a um órgão independente. Além disso, o CFP tem um conjunto de técnicos altamente competentes (alguns foram meus colegas na DGO e na UTAO). Por outro lado, não devemos esperar do CFP nem a aplicação nem a recomendação de medidas que visem a correção dos erros identificados, mas tão-somente essa identificação.
Assim, o objetivo do CFP deverá ser o de sinalizar os desvios e derrapagens, ainda no decurso da execução orçamental, procurando assim inverter o caminho e alcançar os objetivos.
Mas provavelmente a maioria das pessoas não sabe que o CFP é um órgão obrigatório no âmbito da União Europeia. Após a assinatura do Tratado Orçamental, a supervisão orçamental a nível Europeu foi complementada pelo “six-pack” e pelo “two-pack”. E no “two-pack”, o Regulamento 472/2013, que reforça a vigilância económica e orçamental dos membros da zona euro, indica que deve ser criado um “fiscal independent council”.
Eu também acho que a Drª Teodora não devia ter usado a expressão “milagre”. Até porque o que se passou com a execução orçamental de 2016 tem pouco de sobrenatural. Pelo contrário, foi malabarismo orçamental puro e duro. No entanto, a Drª Teodora não disse apenas a expressão “milagre”. Explicou bem como foi alcançado os 2,1% de défice. E como esse valor não é sustentável, face à forma como foi alcançado. Como sucede em Portugal, prefere-se a “espuma dos dias” à substancia e aquilo que é relevante. E que ninguém ouse criticar o governo das esquerdas.
O que a Drº Teodora disse, e que aqui também fui dizendo ao longo do ano de 2016 é que com o documento que o governo apresentou na Assembleia em janeiro não era possível ter um défice abaixo dos 3% do PIB.
Quando se faz uma previsão, faz-se com base em políticas invariantes. Ou seja, se o governo, que tinha acabado de apresentar o OE, mantiver a política que definiu nesse documento, então teremos um determinado resultado final.
Mas, dando de barato que alguns interessados em matérias de Finanças Públicas (gente que opina sem perceber do assunto, conforme vemos quase todos os dias) possam não perceber o conceito de previsões com políticas invariantes, vamos fazer um pequeno exercício: quanto teria sido o défice se o OE/2016 tivesse sido efetivamente cumprido (isto é, se não tivesse havido qualquer mudança face ao que estava no documento original)?
Se o OE/2016 tivesse sido efetivamente cumprido, a receita total, em contabilidade pública, teria ficado em 77.8 mil M€ e não em 78.2 mil M€ (dado que não existiria o PERES). Mas por outro lado, a despesa total teria sido não de 82.5 mil M€, mas de 83.6 mil M€ (o valor orçamentado, isto é, aquilo que o Governo previa gastar, e para o qual, estava autorizado a fazê-lo). Ou seja, o saldo em contabilidade pública teria sido não de 4.3 mil M€ (2,3% do PIB) mas sim de 5.8 mil M€ (3.1%).
De onde vêm este “desvio”? Da receita fiscal, que no OE/2016 previa-se 78 mil M€. Ou seja, o Governo cobrou a menos em 2016, se descontado o efeito do PERES, face ao orçamentado, 400 M€.
Para compensar, o Governo gastou menos 1.1 mil M€ face ao orçamentado. Aonde? Na despesa de capital (-800 M€) e nas outras despesas correntes (-900 M€), isto porque nas despesas com pessoal gastou mais 500 M€ que o orçamentado.
Ora, uma previsão é sempre feita no momento zero, com base na informação que existe. Daí que todas as entidades (CFP, UTAO, Comissão, FMI e OCDE) tenham dito que com AQUELE orçamento de 2016, não seria possível cumprir o objetivo de 2,5%.
Felizmente, houve avisos em tempo oportuno, o que permitiu que o Governo corrigisse o tiro e terminasse com uma execução orçamental que nada tem a ver com o documento original.
Porque estou abismado com a forma como atacaram a Drº Teodora (com quem apenas me cruzei duas ou três vezes, mas que, caramba, até terá os seus pergaminhos de esquerda, ou pelo menos não me parece uma “perigosa neoliberal”), termino com uma citação de um relatório recente do CFP, que me parece que foca o essencial daquilo que é necessário:
- “O CFP tem vindo consistentemente a apontar a necessidade de um compromisso político inequívoco com um programa económico e orçamental de médio prazo, suficientemente fundamentado, detalhado e transparente nas medidas que propõe e no acompanhamento e reporte da sua execução. A consolidação orçamental e a criação de confiança dos agentes económicos quanto à capacidade de financiamento da economia e à estabilidade da política fiscal são domínios estreitamente interligados e constituem a base indispensável de um programa dessa natureza, capaz de criar condições de crescimento sustentado numa economia que sofre de enorme fragilidade financeira.A persistência ao longo de décadas nas despesas públicas e no financiamento abundante como motores do crescimento, não só não garantiu este, como esgotou o espaço orçamental e financeiro para prosseguir no mesmo caminho. A ausência de medidas capazes de pôr termo ao incrementalismo orçamental acabaria por conduzir aos cortes e reposições transversais de despesas e à instabilidade fiscal, geradores de insegurança e incapazes de promover a confiança”.
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