Depois do boom de lojas por todo o país a partir de 1999, a maioria não resistiu ao impacto das crises. Em 2021 faturou-se 46,6 milhões de euros em produtos com selo Fairtrade em Portugal.
O aroma do café da Nicarágua invade o olfato e os chás da Índia ou o cacau do Equador saltam à vista nas prateleiras quando Stéphane Laurent abre as portas da loja de comércio justo, em Lisboa. O espaço do Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral (CIDAC) é um dos poucos que ainda resiste no país, depois da crise financeira de 2008 e a chegada da troika, em 2011, que obrigou a maioria dos espaços a fechar portas.
A propósito da comemoração, hoje, do Dia Mundial do Comércio Justo, que se assinala no segundo sábado do mês de maio, Stéphane Laurent explica que este tipo de atividade tem por base o “consumo responsável” com o objetivo de “aliar o comércio a princípios de justiça, equidade e solidariedade”. Na prática, resume o responsável do espaço do CIDAC, “o comércio justo coloca a prioridade na dignidade humana e na proteção do meio ambiente em detrimento da acumulação de lucro”, pautando-se pelo princípio da solidariedade. “Distingue-se, por isso, do comércio convencional”, dando como exemplo o facto de a loja “pagar sempre o valor que os produtores pedem” sem negociar preços mais baixos.
Foi em 2011 que o CIDAC foi contra a corrente do panorama nacional que se vivia, com todas as lojas do país a fechar em cascata por causa da crise financeira que já sentiam desde 2008. “Quando constatámos que muitas lojas estavam a fechar, decidimos abrir um espaço comercial de base associativa. Tivemos logo clientes, porque algumas pessoas já tinham por hábito comprar produtos de comércio justo”, recorda Stéphane Laurent.
O comércio justo coloca a prioridade na dignidade humana e na proteção do meio ambiente em detrimento da acumulação de lucro.
O espaço abriu portas com uma vasta gama de produtos, desde café, chocolate, chá, especiarias e arroz. A loja também tem uma variada oferta de produtos artesanais do Peru ou da Tanzânia assim como têxteis de Timor-Leste. O CIDAC passou depois a vender produtos locais, como azeite do Alentejo, ervas aromáticas e mel de outras regiões do país.
A loja de comércio justo tem sobrevivido até aos dias de hoje, apesar de ter sentido nas receitas o impacto da crise pandémica por causa da Covid-19. “Até à pandemia a receita da loja era crescente. Sentimos dificuldades em 2020 e 2021, com uma faturação de 28 mil euros e 32 mil euros, respetivamente”, divulga Stéphane Laurent. Agora, sublinha, “estamos a conseguir recuperar os valores de 2019 com receitas na ordem dos 35 mil euros”.
Venda de produtos com selo Fairtrade atinge 46,6 milhões de euros em 2021
O valor das vendas de produtos de comércio justo com o selo de certificação Fairtrade atingiu os 46,6 milhões de euros em 2021, em Portugal, com um crescimento de 1%. E a venda média por habitante por ano é de 4,53 euros em Portugal, de acordo com um relatório da Fairtrade a que o ECO teve acesso. A Fairtrade é membro da Organização Mundial do Comércio Justo (WFTO) e “trabalha em prol da sustentabilidade das pessoas e do planeta. Por trás do selo Fairtrade há um sistema internacional de certificação”, explica esta entidade.
“De acordo com um estudo elaborado pela empresa de consultoria McKinsey e pelo empregador Eucommerce, as vendas de alimentos diminuíram 7,4% na Península Ibérica contra 0,6% em média na Europa“, revela ainda a Fairtrade. Mais, acrescenta, “Portugal e Espanha totalizam 184 milhões de euros com um crescimento de 1% e uma venda média de 3,2 de euros na Península Ibérica”. Só em Portugal foram vendidas 151 marcas e um total de 880 produtos (448 ibéricos e 1467 estrangeiros) em 2021, ou seja, mais 1% do que em 2020.
O café foi o produto mais vendido em Portugal, atingindo mais de um milhão de euros, o que representa um crescimento de 8% em relação a 2020. Segue-se depois o cacau sustentável, certificado com selo Fairtrade, com 32 milhões de euros. Já as vendas do açúcar subiram 2 %, com mais de 2 milhões de euros. Ainda de acordo com a Fairtrade, a fruta e os produtos têxteis representam uma percentagem mais baixa de vendas, ainda que com taxas de crescimento superiores a 15%.
“Graças ao consumo de produtos certificados com selo Fairtrade, em Portugal e Espanha, produtores e agricultores receberam uma ajuda direta de 1.400.339 euros correspondente ao Fairtrade Premium, com o objetivo de alcançar melhorias tanto nos seus negócios como nas suas operações e na sua comunidade”, lê-se no mesmo relatório a que o ECO teve acesso.
Primeira loja de comércio justo abriu em Amarante
Stéphane Laurent, do espaço comercial da CIDAC, ainda se lembra do boom de lojas de comércio justo que surgiram depois de 1999, em Portugal, a reboque do movimento de defesa deste tipo de atividade que “começou nos anos 1970 na Europa”. Foram os anos efervescentes das lojas de comércio justo antes da crise financeira e que abriram as portas a um mundo novo, atraindo consumidores interessados na compra de produtos de vários países em desenvolvimento.
A primeira loja abriu em 1999, em Amarante, pelas mãos de Miguel Pinto, do Aventura Marão Clube (AMC) que é uma associação local sem fins lucrativos, criada em 1993. “Somos cooperantes da Equação – Cooperativa de Comércio Justo – “a primeira importadora e distribuidora portuguesa de produtos de comércio justo, fundada em 2007 por diversas organizações de base, sem fins lucrativos, que promovem este movimento”. No site da Equação pode ler-se: “Este movimento é um poderoso instrumento de cooperação para o desenvolvimento, pois utiliza o mercado e o comércio como ferramenta de trabalho para combater a pobreza, a exploração das pessoas e dos recursos”.
Depois da loja de Amarante, seguiu-se a abertura de muitos outros espaços por todo o país, desde Braga, passando por Guimarães, Barcelos, Porto até Lisboa. “Vendíamos produtos alimentares, artesanais e têxteis de vários países do mundo”, conta Miguel Pinto. A oferta era variada, desde “café de Uganda ou da Colômbia, chá da Índia e do Sri Lanka, arroz da Tailândia, chocolate da Costa Rica e quinoa da Bolívia”, descreve o empresário que ainda hoje vende estes produtos na Casa de Juventude de Amarante.
A crise foi um duro golpe nas lojas de comércio justo que tínhamos no país, porque as pessoas não tinham tanto poder de compra e deixaram de consumir os produtos de qualidade que vendíamos.
Só que depois veio a crise e as lojas de comércio justo não resistiram. “A crise foi um duro golpe nas lojas de comércio justo que tínhamos no país, porque as pessoas perderam algum poder de compra e deixaram de consumir os produtos de qualidade que vendíamos”, recorda Miguel Pinto. A baixa procura dos bens, na altura, mais caros do que nas grandes superfícies, refletiu-se na quebra das vendas que “baixou quase 60% logo em agosto de 2008”, nota. Foi um período difícil, tendo em conta que antes da crise o negócio corria sob rodas. “Vendíamos imenso. As lojas do comércio justo do Porto e de Lisboa faturavam mais de 100 mil euros por ano”, revela.
A difícil conjuntura económica que o país atravessava, o consequente aumento do valor das rendas e as muitas despesas com os colaboradores das lojas contribuíram, segundo Miguel Pinto, para o fecho em cascata dos espaços comerciais, explorados por vários membros da Equação, espalhados pelo país até não restar um único aberto.
As lojas têm muitas despesas fixas, as rendas são cada vez mais altas, as receitas são variáveis e é muito difícil competir com as grandes superfícies.
Agora, frisa o empresário, “o conceito de loja de comércio justo não faz sentido” nos moldes que existia. “As lojas têm muitas despesas fixas, as rendas são cada vez mais altas, as receitas são variáveis e é muito difícil competir com as grandes superfícies”, justifica Miguel Pinto que explora o restaurante do Girassol, na Casa da Juventude de Amarante, onde vende produtos do comércio justo e ainda os utiliza na confeção dos pratos vegetarianos da carta deste espaço. “Vendemos na mesma vários produtos do comércio justo, como chocolate, café, chás, biscoitos, no nosso bar, assim como verduras colhidas da nossa horta biológica e de alguns produtores locais”, conta.
“Para além de garantir a venda e distribuição de produtos de comércio justo, em Portugal”, a Equação também aposta na sensibilização dos mais novos para a importância de colocar em prática a filosofia que está na base do comércio justo, promovendo sessões em várias escolas do país.
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Comércio justo sobrevive a custo a reboque das crises
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