Têxteis pedem apoio a bancos e clientes para acumular stocks
Arrastada do “just in time” para o “just in case” na gestão de stocks, indústria portuguesa do têxtil e do vestuário enche armazéns para assegurar matérias-primas e o abastecimento às marcas.
O grupo Têxtil Manuel Gonçalves (TMG) é um dos maiores e mais antigos do setor em Portugal, com receitas anuais a rondar os 150 milhões de euros e cerca de 1.400 funcionários. Fundado em 1937, o grupo sediado em Vila Nova de Famalicão já atravessou e superou muitas crises. Na atual, descrita pelos analistas como uma “tempestade perfeita”, se o disparo dos custos energéticos é “um tema de sobrevivência” e que tem de suportar; para lidar com a escassez e a subida do preço das matérias-primas e de outros materiais está a “jogar pelo seguro”.
O diretor financeiro do TMG Group, Vítor Fernandes, relata a necessidade de “ter mais stock e mais cedo, para não sofrer uma disrupção” no abastecimento. Algo que exige um reforço do fundo de maneio. “Isto não se faz sozinho. A banca tem de perceber o momento, que a solução passa necessariamente por aqui e que nesta fase tem de abrir mais a torneia do que fechar. Porque se fechar causa um impacto que é crítico”, argumenta o administrador executivo do grupo de Vila Nova de Famalicão, que soma quase 213 mil metros quadrados de área industrial e exporta 90% da produção.
Estamos a jogar pelo seguro para ter mais stock e mais cedo, para não sofrer uma disrupção. Isto não se faz sozinho. A banca tem de perceber o momento, que a solução passa necessariamente por aqui e que nesta fase tem de abrir mais a torneia do que fechar.
Esta tem sido também a estratégia seguida pela Tintex, dedicada à tecelagem e tinturaria, que emprega 140 pessoas e tem vindo a aumentar os stocks de fio em Vila Nova de Cerveira. “Até antes destas disrupções era fácil comprar algodão de boa qualidade. Agora é mais difícil e temos de nos antecipar e segurar compras. É obrigatório, senão não temos hipótese de responder rápido”, indica ao ECO o presidente executivo, Ricardo Silva.
Além da “banca [que] é essencial e tem de perceber” esta nova necessidade da indústria em resposta ao atual contexto, como está a mitigar esse impacto? “Tento fazer com que os clientes, como as marcas, assumam a encomenda, assumam o compromisso de usar. Se assim for é muito mais fácil negociar porque está tudo certo. E a parte financeira, em si, toma menos pressão. Uma coisa é o risco de não saber que vou consumir; outra coisa é o risco financeiro, só do impacto do uso do stock. Esse é mais controlável”, responde o gestor da empresa do Alto Minho, que faturou 12 milhões de euros em 2021.
Tento fazer com que os clientes assumam a encomenda, assumam o compromisso de usar. (…) Uma coisa é o risco de não saber que vou consumir; outra é o risco financeiro, só do impacto do uso do stock. Esse é mais controlável.
No entanto, adverte Ricardo Silva, num momento em que os custos das matérias-primas estão num pico, assume que apenas faz stocks de alguns materiais específicos e que acha que não vão subir mais nem descer muito de preço. “Por exemplo, algodão puro e duro não ‘stocko’. Nem pensar. É encomenda a encomenda. Um ou outro compro antecipadamente porque sei que vou consumir num espaço de tempo e porque tenho o compromisso das marcas. E às vezes estão lá três meses, às vezes seis meses. Mas porque sei que está o preço fechado e o negócio vai andar”, esclarece o porta-voz da Tintex.
Raul Magalhães, que é presidente da APLOG – Associação Portuguesa de Logística, em representação da Sonae, descreve uma “mudança radical ao nível dos stocks”, com as empresas a terem de “trabalhar com cada vez mais” e também de melhorar essa gestão para tentarem ter reduzir ao máximo esse custo. “Abandonámos o ‘just in time’ e passámos a ter o ‘just in case’. Isto poderá fazer a diferença entre marcas e entre países”, decretou.
Durante uma conferência com o tema “Têxtil do Futuro – Desafios para o Crescimento Sustentável”, organizada por esta associação do ramo logístico no World of Wine (WoW), em Vila Nova de Gaia, Raul Magalhães advertiu ainda que a produção tem de “começar a internalizar que a subida dos custos da energia, dos transportes e das matérias-primas veio para ficar” e que “tem de olhar para ela não como episódica, mas estrutural”.
Desagregar-se ou sobreviver “como sempre”
Em Barcelos, dedicada apenas à confeção e “como o negócio está hoje”, para a Pedrosa & Rodrigues os stocks não são um tema, pois não tem um único quilo que não esteja já vendido — é apenas uma questão de utilização racional de recursos e de compras bem feitas. Em declarações ao ECO, o administrador, Miguel Rodrigues, salvaguarda, porém, que se ou quando o setor do vestuário entrar num Make to Order (MTO) reativo, com as encomendas a virem diretamente dos pontos de consumo para as fábricas, aí os stocks vão ter preponderância também para as confeções. “Como depois se dispersa esse risco e a liability associada aos stocks, isso está em discussão”, nota.
Já os “aumentos que estão a chegar de todos os lados” — desde o gás e eletricidade aos fios e fibras, passando pela mão-de-obra –, sublinha, “são de tal ordem que já toda a gente na cadeia está a abdicar de margens e só não está a querer prejuízo — mas não sei se não será uma opção”. “Está a ser integrado no preço e a ser passado às marcas. Resulta num primeiro momento em perda de competitividade. Trabalhamos num segmento muito alto, tenho alguns clientes em que isso não é muito importante, mas todos gostam de descontos. Há sempre pressão sobre o preço”, descreve o empresário minhoto, filho dos fundadores Sabina Pedrosa e Casimiro Rodrigues.
Os aumentos que estão a chegar de todos os lados. São de tal ordem que já toda a gente na cadeia está a abdicar de margens e só não está a querer prejuízo – mas não sei se não será uma opção.
Miguel Rodrigues, que emprega uma centena de pessoas e fatura 16 milhões de euros por ano nesta empresa criada em 1982, lembra que a maior parte das marcas de vestuário “ainda não fez os ajustes aos consumidores”. O facto de, nos últimos dias, a Primark ter já assumido que vai aumentar os preços, acabará por “arrastar as outras marcas”. E confidencia que os seus próprios clientes, em posicionamentos mais elevados, lhe dizem que não querem ser os primeiros a subir, isto é, estão à espera que as insígnias concorrentes avancem.
“Quando chegar ao consumidor vamos estar a degradar o poder de compra, a criar inflação. Mas não estou a ver saída. Haverá algum equilíbrio [nos preços] em algum momento, mas não sei como, quando e porquê. E quem resta no fim. Um dos nossos principais fornecedores de tinturaria tem faturas [de energia] multiplicadas por cinco num ano. Há limites. Se isto perdura e se as tinturarias se tornam inviáveis, sem tinturarias não há confeção, não há produto e a cadeia desagrega-se. O setor em Portugal está a ser mantido com a faca nos dentes”, alerta o administrador da Pedrosa & Rodrigues.
Ora, quem conhece bem a indústria portuguesa do têxtil e do vestuário, como poucos, é Paulo Vaz. O antigo diretor-geral de uma das principais associações setoriais (ATP) recorda como o têxtil tem vivido “permanentemente sob pressão” nas últimas décadas. E atesta que “não há setor mais resiliente que este, sempre capaz de encontrar caminho para sobreviver”.
“É sempre a questão de sobrevivência. Estamos agora perante um cocktail de desafios, nunca tivemos tanto com que nos preocupar. Passei 30 anos no setor, vi acontecerem muitas coisas. Quase sempre se vaticinava que ia terminar, que íamos ser substituídos por outra coisa qualquer — por serviços, por setores mais tecnológicos. E aqui estamos”, conclui o atual administrador da Associação Empresarial de Portugal (AEP).
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