E que tal mexerem-se?

A regulação bancária deve definir regras pela negativa, que delimitem o que não se pode fazer, e relativas a práticas concretas. Seria muito mais útil do que muitas micro medidas.

A avaliar pelas notícias dos últimos dias, os problemas da banca portuguesa parecem não ter fim. Esta situação, que nem de propósito coincide com o cerco político ao Banco de Portugal, reforça a necessidade de uma reflexão sobre as questões que têm assolado a actuação dos reguladores. Primeiro, a questão da sua autonomia. Segundo, a sua democraticidade. E, terceiro, a sua responsabilidade, em particular, saber o que irão fazer os reguladores a propósito de vícios que persistem em Portugal no que toca às práticas bancárias.

Neste artigo, vou focar-me precisamente no terceiro ponto. Há muito que escrevo sobre a problemática da regulação bancária. Num ensaio publicado em Junho de 2015 na revista “Ter Opinião XXI” da Fundação Francisco Manuel dos Santos (“Regras simples e justas”) defendi que os reguladores bancários existem sobretudo para duas coisas:

  1. Garantir a oferta de crédito à economia em condições estáveis e a preços competitivos (supervisão prudencial).
  2. Elimitar e corrigir as assimetrias de informação que decorrem de um sistema intrinsecamente complexo como o financeiro (supervisão comportamental).

Na minha opinião, é a partir destes dois pilares fundamentais, devidamente balizados por via de mandatos politicamente legitimados, que se defende a essência da actividade bancária: a confiança nos seus intervenientes e nas suas instituições.

Infelizmente, os resultados em Portugal não poderiam estar mais distantes do fim pretendido. Por um lado, a oferta de crédito tem vindo a diminuir incessantemente nos últimos anos. Por outro lado, continuamos a assistir à generalização de práticas bancárias desadequadas.

A confiança dos cidadãos no sistema financeiro e, por conseguinte, a percepção dos mesmos quanto à actuação dos reguladores está hoje muito abalada. Mas antes de avançar na crítica, que desejo construtiva, devo fazer um preâmbulo. E para dizer o quê? Para dizer que o sistema bancário de um país é o reflexo da sua economia. Ou seja, que dificilmente a banca poderá ser forte se tiver como pano de fundo uma economia frágil, como a portuguesa.

Porém, dito isto, há golpes que podem ser evitados. Trata-se tão só de aprender com as lições do passado. Porque se recuperarmos os colapsos e quase colapsos bancários dos últimos anos observamos que na sua base esteve sempre, no essencial, o mesmo problema: a instrumentalização dos bancos por parte dos seus accionistas.

Neste contexto, a comercialização em balcão, junto de clientes de retalho, de dívida emitida por empresas relacionadas com os bancos, como se de depósitos a prazo se tratassem, parece ter sido a regra em Portugal, e não a excepção.

Há quem defenda que os bancos não deveriam poder financiar os seus accionistas. Não vou tão longe. A experiência mostra que a razão pela qual muitos investidores se estabelecem como accionistas de bancos é precisamente para terem acesso a fontes de financiamento.

Não vejo que isto seja necessariamente ilegítimo. Apenas exige fortes e necessárias salvaguardas. Das duas uma: ou se proíbe aos bancos a concessão de crédito aos seus accionistas, ou se limita aos bancos a comercialização de dívida emitida por entidades relacionadas. Vou pela segunda via, recomendando que a venda deste tipo de dívida ficasse limitada exclusivamente ao universo dos investidores qualificados. Até porque não faltam em Portugal pequenos depositantes e aforradores que foram levados a adquirir títulos de dívida de entidades relacionadas dos bancos, títulos frequentemente muito subordinados, pensando que estavam a contratar o risco de um depósito a prazo.

Esta limitação poderá parecer excessiva, porém, a regulação bancária deve definir regras pela negativa, fronteiras intransponíveis que delimitam claramente o que se não pode fazer. Que procuram defender o cliente comum da assimetria de informação que caracteriza a actividade financeira.

Adicionalmente, há que reforçar o papel e a importância dos auditores externos porque, também nesta matéria, não faltaram nos últimos anos alertas e sinais de perigo. É reler os relatórios de contas de algumas entidades e facilmente constataremos reservas e ênfases de auditores e revisores oficiais de conta (ROC). E, portanto, parece-me caso para questionar: deveriam os reguladores permitir a aprovação de contas com reservas e ênfases? Estou tentado a dizer que não. Porque ao não o permitirem, para além do incentivo à prevenção contra certo tipo de equívocos, sinalizar-se-ia aos auditores a importância dos seus comentários e, sobretudo, a necessidade de acção correctiva em tempo oportuno. Seria uma forma de coresponsabilizar os auditores.

A este respeito, note-se que a função do ROC (que, sendo imposta por lei nas sociedades anónimas, constitui um custo coercivamente imposto às empresas) é, em parte, a de representar o Estado (e, claro, todos os demais “stakeholders”). É isto que resulta da obrigação de zelar pelo cumprimento das normas contabilísticas definidas pelo legislador. Logo, ao não se dar a relevância devida às observações formais dos ROC, esvazia-se o conteúdo da sua intervenção, permitindo ainda, passe a expressão, que os mesmos possam eventualmente “lavar as suas mãos” sem mais.

Mas é na concessão de crédito que estão as duas fronteiras que deveriam ser (mas que não são) verdadeiramente intransponíveis. Começando pelo crédito hipotecário, é indispensável que se estabeleça como regra basilar o seguinte princípio: quem executa a hipoteca, cancela a dívida. Como bem sabemos, não é o caso em Portugal, onde os bancos podem executar as hipotecas, vender os imóveis como bem entendem e, de seguida, imputar aos devedores as dívidas remanescentes.

Na prática, isto desresponsabiliza os bancos e incentiva-os a avaliações sobre estimadas dos imóveis. Mais grave ainda, desequilibra irremediavelmente a relação entre credor e devedor, que já de si é intrinsecamente assimétrica. Situação semelhante acontece no crédito às empresas de responsabilidade limitada. Não é a primeira vez, nem será a última, que escrevo sobre o abuso que é a solicitação, no âmbito de um operação de crédito a uma sociedade de responsabilidade limitada, de um aval pessoal aos sócios.

Infelizmente, é prática corrente em Portugal. Para além de violar o princípio que subjaz ao conceito da responsabilidade limitada (ao capital da empresa), só produz consequências negativas. Desincentiva os bancos da análise de risco do projecto que especificamente se pretende financiar. Desincentiva os sócios de uma adequada capitalização das empresas. E quando tudo corre mal tudo fica em ruínas – o banco, a empresa, e o sócio –, inviabilizando a reafectação de recursos entre sectores da economia. Também devia ser proibido.

Enfim, estou genuinamente persuadido de que com três ou quatro grandes fronteiras, que endereçassem práticas concretas, se faria muito mais pelo sistema financeiro (e pela supervisão bancária) do que com a multiplicidade de micro medidas, a maioria das quais irrelevantes e essencialmente burocráticas, que hoje observamos.

A situação não é exclusiva de Portugal; na verdade, representa uma tendência regulatória que temos vindo a importar de Bruxelas e de Frankfurt. Mas esta micro regulação atrapalha mais do que aquilo que resolve. Pior, cria uma ilusão de controlo que a prática vai desconstruindo. E mais ainda, coloca, erradamente, a gestão das instituições no gabinete do regulador. É, na minha opinião, o contrário do que a regulação deveria ser – a regulação deve ser macro, definindo o que se não pode fazer, e não o que se pode fazer.

Revela também uma cultura burocrática, completamente anacrónica, numa altura em que o futuro é “fintech”. O tempo do papel e do formulário interminável, como aquele que ainda recentemente tive de preencher para abrir uma conta para um dos meus filhos, formulário certamente destinado a um qualquer arquivo só para confirmar que o procedimento foi realizado, tem os dias contados. E o tempo dos reguladores à margem da crítica, para quem o tempo é só para os outros, também já passou.

Esta desadequação cultural é igualmente observável sob outra perspectiva. Então, num país onde o stock de crédito tem diminuído ano após ano – de acordo com os boletins estatísticos do Banco de Portugal, entre 2010 e 2016, o stock de crédito bancário às famílias e sociedades não financeiras diminuiu 50 mil milhões de euros (perto de 30% do PIB) – e onde o número de balcões bancários por cada 100.000 habitantes é o dobro do existente na zona euro (54 contra 28, segundo a OCDE), a banca em Portugal encontra-se dominada por quatro ou cinco entidades que entre si controlam 90% do activo bancário. Será isto razoável? Será isto somente o resultado de uma economia fragilizada? Ou, será antes o resultado de um corporativismo que impede a entrada de novos operadores? Inclino-me para a segunda hipótese.

De facto, quando olhamos para outros países (entre países da nossa dimensão), onde a concentração bancária é muito inferior à nossa e onde as fontes alternativas de financiamento, como o crédito não intermediado (P2P) ou o colaborativo (“crowdfunding”) estão em forte expansão, e os comparamos com Portugal, onde o financiamento colaborativo levou uma sapatada regulatória quando ainda dava passos de bebé, ficamos de boca aberta.

Tudo isto me leva a concluir que, sim, devemos criticar os resultados desta regulação, porque são de facto maus, embora especialmente maus por causa da economia, mas não, não é o senhor A ou o senhor B que mais deveríamos criticar, é a cultura que transversalmente os condiciona.

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