Chegou a altura de se dizer à VINCI que Portugal não é a república das bananas

O Governo tem dado a cara pela solução do Montijo, mas, em boa verdade, é a VINCI que o devia ter feito.

No século XXI as empresas têm que ser rentáveis mas a mera maximização da riqueza para os acionistas já não está sozinha nas metas da gestão. A responsabilidade social, nas suas múltiplas vertentes, é crucial para as empresas bem-sucedidas. Não nos parece que aquela tenha norteado a ANA-Vinci no processo relativo à ampliação da capacidade aeroportuária de Lisboa. Em vez disso, foi notório o menosprezo ambiental, a ligeireza da solução e os atropelos à legislação e ao contrato, na génese da alternativa da concessionária ANA-Vinci.

Era do domínio comum que a larga maioria das aves do estuário estava na margem sul do estuário do Tejo; para o confirmar, bastava ver a contagem no anuário ornitológico 2009/10, que contabiliza mais de 99% das aves do estuário nos múltiplos refúgios da margem sul (na margem norte só existe um refúgio em Alverca com menos de 1%).

A encomenda de um estudo à EUROCONTROL foi para uma capacidade de 72mov/h (contrato de concessão 90mov/h) e restringida às pistas existentes nas três Bases Aéreas, já analisadas no passado, e todas convergentes com a pista principal da Portela.

As desconformidades processuais foram gritantes: só foi entregue o Estudo de Impacte Ambiental (EIA) de 25% da solução VINCI, nenhuma das principais especificações técnicas mínimas do contratual anexo 16 era atendida (sistema de pistas, conexão à rede ferroviária, …), passava-se um pano sobre a transferência do vizinho polo químico (ao contrário de Frankfurt) e até parecia que o reflexo das alterações climáticas na infraestrutura Portela e Montijo era coisa para daqui a cem anos.

No Montijo, nem as contas batiam certas. A projeção até ao fim da concessão era de 67M de passageiros, o que significa, com a média por voo ANAC (arredondada 155), um volume de 432.000mov. Contudo, a VINCI calculou com a exorbitante média de 194 passageiros voo, artifício que baixou o volume para 345.000mov, ficando Portela com 260.000 (o limite) e indo os restantes 85.000 para o Montijo. Com a média ANAC, o Montijo teria de aguentar 172.000mov (432.000-260.000), o dobro do avaliado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA).

Com este pano de fundo, qualquer pré-avaliação teria chumbado o Montijo. Mas não foi o caso, multiplicando-se as tentativas para se burilar uma “solução técnica” para a nova pista Montijo 01-19 para uso misto civil-militar, que substituía a pista militar 08-26, em relação à qual a distância disponível para aterrar reduziu de 2.440m para 2.050m, o taxiway deixou de ser a todo o comprimento (avião teria de rolar na pista para chegar ao topo), a distância de segurança fim-de-pista reduziu para menos de metade e desapareceu o sistema de ajuda à aterragem com 900m (CATI).

Parece surreal, mas é uma inevitabilidade económica. Uma pista com 2.500m com distância de segurança de 300m, exige uma plataforma com um comprimento de 3.100m. E um taxiway como o hoje existente, precisa de uma plataforma com uma largura de 400m. O que em conjunto significa mais do dobro da área sobre água. E, pior, a “Superfície Livre de Obstáculos” da descolagem impediria a navegação no canal e a estrutura de suporte do sistema de ajuda à aterragem cortaria o canal de navegação, o que obrigaria a abrir um novo, a sul da ilha do Rato.

É uma batelada de dinheiro, inconciliável com a baixa receita de um aeroporto low cost. Por isso, a ANA-VINCI apresentou uma solução “coxa”. E não ficou nada agradada com a APA quando esta entidade escolheu, e bem, a solução do avanço da plataforma sobre água apoiado em estacas, entre as três possibilidades avançadas pela VINCI (uma em aterro, uma de estacas e uma mista). A VINCI sabia do extraordinário aumento de custo que dela resultava caso a pista viesse a ser revista e, por isso, repudiou a sua própria opção.

Os três “pecados mortais” da VINCI

  1. Fecha a pista cruzada na Portela para reforçar o último HUB europeu dentro da cidade e o único HUB de uma só pista, ao qual soma um aeroporto na outra margem do estuário com uma pista dos primórdios da aviação e em que os aviões teriam de driblar bandos de aves.
  2. No EIA Montijo, o volume previsto para a Portela era de 260.000mov, quando já se sabia que, em Lisboa, só a subida parcial de 142.000mov para 180.000 já tinha provocado um aumento de 163.800 pessoas afetadas pelo ruído. Em contraste, na mesma época, era rescindida a concessão de Nantes à VINCI por o Estado francês querer implementar uma solução que eliminava o ruído sobre 6.800 pessoas.
  3. A VINCI é acionista da empresa que gere os aeroportos parisienses Bourget e CDG (tão próximos entre si como os de Portela e Alverca), os quais fazem aproximações paralelas simultâneas com um afastamento transversal de 1,3NM (2,4km), graças a uma nova pista no primeiro aeroporto paralela às pistas do segundo. Com base nesta simples e irrefutável prova, a VINCI deveria ter desfeito o mal-entendido dos técnicos que disseram à tutela que a nova pista de Alverca ficaria no meio do rio por o afastamento mínimo ser de 3NM (5,5km).

Todas as consequências da alternativa da concessionária são da responsabilidade da ANA-Vinci

É inquestionável que a pista Montijo 01-19 não tem condições para viabilizar um pequeno aeroporto low cost. A ANA-pública e a NAV já o tinham dito no passado e a sucessão de expedientes para tentar encaixar uma curta e não-regulamentar pista, foi apenas mais uma confirmação. E perda de tempo.

Ora, em 2017, a VINCI já tinha pleno conhecimento de que estruturação dual do par de pistas paralelas do HUB Alverca-Portela era semelhante, para melhor, à estruturação Bourget-CDG. No ano seguinte, já conhecia o resultado da AAE do HUB Alverca-Portela em que este ganhava, destacadamente, ao HUB Portela + Montijo e ao HUB Alcochete.

Porém, a empresa, provavelmente confiante na sua posição leonina, persistiu com Montijo (25% do tráfego) sem nada apresentar da Portela, impasse que só a Assembleia da República desfez em novembro de 2020, ao votar a favor da realização de uma AAE com o total da solução.

Chegados aqui, temos, de um lado, a incapacidade Montijo e a demora e o gigante custo do HUB Alcochete com acessibilidades e, do outro lado, a simplicidade e rapidez da alternativa de Alverca, com todas as acessibilidades já construídas.

O contrato de concessão prevê Alternativa da concessionária ao NAL (Novo Aeroporto de Lisoba) e, caso ela não seja adequada, a Alternativa do concedente ao NAL, mas nada quanto à possibilidade de três aeroportos, com Portela a operar + Montijo intercalar a operar + CT Alcochete definitivo a construir, fechando os primeiros dois com a conclusão do último.

E que Montijo intercalar? A insuficiente/perigosa pista Montijo ou outra desenvolvida pela tutela? É uma intrincada teia jurídica e técnica, precisando de muito tempo para se resolver. O que contrasta com a simplicidade /baixo custo de Alverca e a abertura low cost em apenas 2,5 anos.

O Governo tem dado a cara pela solução mas, em boa verdade, é a VINCI que o devia ter feito. Bom, bom, seria que o ministro da tutela, com a coragem que se lhe reconhece, pusesse um ponto de ordem na VINCI e na atabalhoada alternativa do Montijo. Portugal não é a república das bananas!

  • Colunista convidado. Professor na Católica Lisbon School

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