Como Fukuyama inverteu as ameaças à economia de mercado e à democracia liberal
O igualitarismo intolerante é que ameaça a democracia liberal e o nosso bem estar, e é também por causa dele que a defesa de Fukuyama não é completa.
Nestas férias aproveitei para ler Francis Fukuyama no recente “Liberalismo e seus descontentes” e em “O Fim da História e o Último Homem”, publicado no início dos anos 1990. A leitura dos dois livros ajuda a melhor compreender várias questões e desafios com que as democracias liberais e a economia de mercado se defrontam.
No livro mais recente Fukuyama faz uma defesa fundamentada da democracia liberal adoptando uma perspectiva moderada, como confirmou nas Conferências do Estoril que decorreram na semana passada. A sua visão renega as abordagens de esquerda dos socialistas não democratas e dos comunistas, e também as abordagens nacionalistas extremadas, que define como sendo de direita (apesar de muitas serem de esquerda).
A base dos dois livros é que a democracia liberal consiste na ideia de que a legitimidade do governo depende da vontade e dos direitos dos governados e não de qualquer outra origem, sendo para isso fulcral que haja liberdade e igual dignidade – sob o primado da lei e com separação de poderes – que se traduz, por exemplo, no mesmo peso dado a cada voto.
Eu chamaria a isto simplesmente democracia porque o uso socialista dado ao mesmo termo não corresponde a um sistema democrático, mas sim à tentativa de abuso do governo que, sob a capa da palavra “democracia”, manipula o Estado para exercer o poder de forma impune. Sendo a democracia um sistema para eleger representantes, sempre que leva ao abuso de poder – mesmo que através de eleições livres – o resultado é a negação do que é a própria democracia enquanto poder das pessoas.
Mas a sua perspectiva sofre de vários problemas, e o que é mais relevante para este artigo é a contradição quando desvaloriza a visão anglo-saxónica como sendo “economicista” (visaria apenas a “confortável auto-preservação“ do indivíduo) ao mesmo tempo que apresenta a independência e a constituição dos Estados Unidos, que Fukuyama reconhece assentar no mesmo ideal anglo-saxónico, como um dos pilares da democracia liberal.
No livro de 1992 Fukuyama usa as obras de Hegel e Kojéve para justificar que as condições para a afirmação da democracia liberal foram alcançadas e daí a referência a “O fim da história e o último homem” como processo evolutivo. Para isso, junta à razão e ao desejo naturais como explicações para o comportamento humano – que Fukuyama refere ser a essência da limitada visão anglo-saxónica – o reconhecimento da dignidade humana por cada individuo com base na livre e igual capacidade em fazer escolhas morais (que, supostamente, o ideal liberal anglo-saxónico de Hobbes e Locke não valoriza). Assim, seria com base na liberdade e na igualdade associados à luta pelo reconhecimento que se implementaria a cultura cívica que permitiria afirmar e consolidar as democracias (e as economias de mercado, acrescento eu).
Mas a sua perspectiva sofre de vários problemas, e o que é mais relevante para este artigo é a contradição quando desvaloriza a visão anglo-saxónica como sendo “economicista” (visaria apenas a “confortável auto-preservação“ do indivíduo) ao mesmo tempo que apresenta a independência e a constituição dos Estados Unidos, que Fukuyama reconhece assentar no mesmo ideal anglo-saxónico, como um dos pilares da democracia liberal. Dado que as ideias conservadoras-liberais que sustentam a constituição norte-americana foram iniciadas na Grã-Bretanha de Locke um século antes, dada a obra do “Pai” da Economia, Adam Smith, que assenta em valores morais, ou dados autores como Burke, assim como a “Bill of Rights” ou a soberania do parlamento britânico, é estranho que Fukuyama não lhe dê mais destaque.
O outro pilar da democracia liberal que Fukuyama refere é a revolução francesa, que apresenta como a origem da liberdade e da igualdade, depois espalhadas por esse mundo fora pelos “soldados de Napoleão”, na sua expressão. Também aqui é estranho como o autor desvaloriza a influência britânica na revolução francesa e considera que os britânicos, que viveram desde o século XVII com a soberania do parlamento, não passaram tais valores.
Os britânicos tinham um parlamento eleito por homens livres e tinham um Rei que dele dependia para reinar um século antes da independência norte-americana ou da revolução francesa, e dois séculos antes da democracia se consolidar em França, para além das obras em sua defesa publicadas por diferentes autores ao longo dos séculos XVIII e XIX. Mas, na interpretação de Fukuyama, ninguém reparou nisso no resto do mundo. A tradução de Locke para português feita e distribuída aos parlamentares que trabalharam na constituição liberal ao longo do século XIX é um pormenor sem importância quando comparado com as hordas de soldados de Napoleão, que nunca deixaram de viver em ditadura, mas que espalhariam liberdade e igualdade por onde passavam, como quem distribui flores, enquanto destruíam, violavam e roubavam os povos que invadiam.
O problema de Fukuyama é que a Grã-Bretanha não encaixa na sua perspectiva de que é a luta revolucionária pelo reconhecimento individual que faz avançar a história (em ambos os livros parece ter um preconceito sobre a bondade das revoluções e das repúblicas que o impede de associar a monarquia com liberdade e democracia). As mudanças no Reino Unido foram graduais após 1688, sempre sob a soberania do parlamento e sem qualquer revolução, e sempre com maior liberdade e mais legitimidade democrática da sua classe política do que em qualquer outro país da Europa (com exceção, talvez, da Suiça).
Por algum motivo que não se compreende, o autor mantém as mesmas narrativas ilusórias do século XX. Se na altura do primeiro livro ainda estávamos no espírito da “guerra fria”, em que muitos recorriam ao elogio exagerado da revolução francesa para legitimar a revolução soviética, sua herdeira, hoje isso deixou de fazer sentido. Mas Fukuyama repete no livro de 2021 a mesma tónica de valorização das revoluções, e especialmente da francesa.
Esta separação entre a visão “economicista” anglo-saxónica e a luta pelo reconhecimento da revolução francesa leva Fukuyama a considerar que a economia de mercado é separável da democracia liberal quando refere o seu funcionamento em ditadura. Ou seja, o autor concilia a economia de mercado, que assenta na liberdade individual, com regimes ditatoriais em que não há liberdade e, consequentemente, o mercado não pode funcionar.
Na prática, parece não compreender que a liberdade económica e a liberdade política não podem ser dissociadas, e que uma sociedade só é livre quando é descentralizada e quando os seus membros têm a liberdade de escolher o seu lazer, o seu negócio, onde querem estar e o que querem e como o querem fazer, tudo dentro das regras da lei. E ainda recorre várias vezes ao termo “neoliberal” que é promovido pela esquerda anti-mercado, (no Estoril explicou que para ele significa apenas uma “economia sem regras e somente preocupada com a eficiência”).
Esta separação entre a visão “economicista” anglo-saxónica e a luta pelo reconhecimento da revolução francesa leva Fukuyama a considerar que a economia de mercado é separável da democracia liberal quando refere o seu funcionamento em ditadura. Ou seja, o autor concilia a economia de mercado, que assenta na liberdade individual, com regimes ditatoriais em que não há liberdade e, consequentemente, o mercado não pode funcionar.
O mais relevante é que a luta pelo reconhecimento que Fukuyama tanto valoriza pode ser facilmente confundida com a luta por outras coisas que pouco têm a ver com liberdade e democracia, incluindo limitar a própria liberdade e a própria democracia. Para além da razão e do desejo, que Fukuyama limita à lei natural, mesmo aceitando que são as motivações mais importantes para o ser humano, a luta pelo reconhecimento que o autor diz ser fundamental para a evolução da história pode ser também uma quebra dos limites da natureza que representa um risco para o individuo sem retorno evidente. Ou seja, a mesma luta pelo reconhecimento que resultaria de uma aspiração ou de um sentimento de justiça que vai para além dos limites da natureza, representa, na prática, um “abrir de portas” ao relativismo e à aceitação de que algumas ideias que “atacam” a própria democracia liberal e a economia de mercado, como o pós-modernismo ou a ideologia do “género” que dele resulta, possam ser motores da evolução histórica.
Por isso o autor reconhece que a democracia liberal tem no seu seio uma “semente de auto-destruição”. Em “Liberalismo e seus descontentes” Fukuyama expõe algumas das falhas do liberalismo e afirma que a democracia liberal está sob ataque pela esquerda e pela direita, aprofundando o que afirmava em 1992, em que os exageros da luta pelo reconhecimento igualitário, pela esquerda, e os exageros da afirmação da superioridade de alguns humanos, pela direita, poderiam colocar em causa o “fim da história” da afirmação da democracia liberal.
O que é notável é que enquanto em 1992 a intuição de Fukuyama era de que seria na esquerda igualitária que estaria o maior perigo para a democracia liberal e para a economia de mercado, em 2021 o perigo que destaca é o da direita dita nacionalista, recorrendo a uma visão exagerada sobre a ameaça que Trump constitui e que, com Orbán, se tornou uma “bête noire” (como se observou nas Conferências do Estoril).
É esta inversão no destaque dado às ameaças à economia de mercado e à democracia liberal que é difícil entender em Fukuyama. Não porque Trump ou Orbán não devam ser criticados, mas porque secundariza duas coisas fundamentais: o perigo da esquerda igualitária, populista e intolerante, quer pelas chacinas do século XX quer pelo relativismo do século XXI; e que é este radicalismo igualitário que alimenta o perigo à direita.
O radicalismo do século XX e o do século XXI têm em comum a ideologia intolerante de teor marxista em que as classes deram lugar às “identidades”, a utopia da criação do homem novo que faz um corte com todo o legado histórico e com todas as tradições, a tentativa de corroer os valores que constituem a base greco-romana e judaico-cristã da civilização ocidental e a intolerância e os tiques totalitários para com quem tente discordar. A raiz é a mesma, as “universidades” que deixaram de ser fontes de conhecimento e passaram a negar a verdade.
O radicalismo do século XX e o do século XXI têm em comum a ideologia intolerante de teor marxista em que as classes deram lugar às “identidades”, a utopia da criação do homem novo que faz um corte com todo o legado histórico e com todas as tradições, a tentativa de corroer os valores que constituem a base greco-romana e judaico-cristã da civilização ocidental e a intolerância e os tiques totalitários para com quem tente discordar. A raiz é a mesma, as “universidades” que deixaram de ser fontes de conhecimento e passaram a negar a verdade.
Onde no século XX estavam os que justificavam a União Soviética e não reconheciam dezenas de milhões de mortos na China, os que sempre negaram a liberdade da economia de mercado e os que sempre defenderam a tirania da igualdade que escravizou e empobreceu populações inteiras, estão agora os revisionistas que querem impor uma versão da História que confirme a sua ideologia, os populistas que abusam de “minorias” para justificar a luta por uma ilusória “justiça” social, os activistas que defendem a estagnação económica em nome da rebelião ambiental e os fanáticos que “inventam” a nova linguagem e novos “géneros”.
A visão de Fukuyama secundariza coisas que são demasiado importantes e que alimentam o radicalismo à direita: a intolerância nas universidades, a censura da linguagem que não está de acordo com os cânones impostos, o proselitismo ideológico, a imposição de comportamentos e a ingerência nos hábitos alimentares e outros, a violência verbal, os desacatos, a desonestidade intelectual, a chantagem emocional, as constantes tentativas de extorsão de recursos ou o relativismo que são agora parte da nossa vida em sociedade. Tudo isto lembra o rol de actos de uma associação criminosa que se tornaram aceitáveis por serem de esquerda e ocorrerem em escolas, universidades, hospitais, na comunicação social e em serviços públicos.
Os exemplos são muitos e, infelizmente, cada vez mais frequentes, mas o mais grave é que todo este relativismo se está a tornar numa “religião” que, ao contrário das religiões clássicas no mundo desenvolvido, que foram secularizadas e passaram para a esfera privada, se enraíza no domínio público e em todas as áreas da nossa sociedade. São crenças sem base científica que se sedimentam nas pessoas, nas empresas, na economia e na política.
Há algo mais perigoso do que isto para o futuro da democracia liberal e da economia de mercado? Acima de tudo, é o igualitarismo intolerante que ameaça a democracia liberal e o nosso bem estar, e é também por causa dele que a defesa de Fukuyama não é completa.
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