Um aviso, apesar de tudo, pertinente

O sermão de Marcelo à ministra da Coesão sobre a execução dos fundos comunitários foi defeituoso e incompleto, mas não deixou de ter razão.

Não é frequente ouvir-se o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a criticar o Governo de António Costa. Mas há dias ouviram-se críticas presidenciais, na verdade mais avisos do que críticas, e foram fortes. Tão fortes que, mais do que a substância da interpelação, o que ficou para a posteridade foi mesmo a forma como o Presidente abordou o membro do Governo presente na ocasião. Calhou à ministra da Coesão levar com o sermão presidencial sobre a reduzida execução dos fundos europeus, um sermão porventura injusto porque não cabe àquela ministra o pelouro dos fundos (do PRR) cuja execução Marcelo estaria aparentemente a criticar. A interpelação provavelmente terá falhado o alvo específico, no caso do PRR, a ministra Vieira da Silva, e excedeu também o trato da função presidencial, mas não deixou de ser pertinente.

O PRR está a braços com uma execução muito desapontante. Recorde-se que, segundo previsto inicialmente, em 2022 o PRR deveria ser executado em 25% – uma despesa superior a 4.000 milhões de euros. O ano de 2022 seria assim o ano de maior execução do programa. Recorde-se também que o programa terá de ser integralmente executado até 2026 (sendo que para 2026 estava inicialmente prevista uma execução residual de apenas 3% do total). Todavia, chegados quase ao final de 2022, qual é o ponto de situação? De acordo com o último relatório de monitorização do PRR (de 3/11/2022), a execução está em 6% do total (correspondente a pagamentos no montante de 1.007 milhões de euros), ou seja, apenas um quarto do que seria de esperar até ao final de 2022. Desapontante é eufemismo. A palavra certa é desastre.

Não é só o PRR que está atrasado. Também a execução do PT2020, a ser executado até ao final de 2023, segue atrasada face à meta definida, neste caso, pelo próprio Governo. Em 2022, o executivo nacional estimava terminar o ano com uma execução do PT2020 de 87%. Porém, segundo os últimos dados disponíveis, a referida execução está em 78%. Todos estes atrasos são problemáticos para Portugal. Como é sabido, os fundos europeus são cruciais não só para financiar o investimento público que o Governo meteu na gaveta nos últimos anos, preferindo gastar recursos dos contribuintes com despesa corrente, mas também para cofinanciar investimentos privados e colmatar a descapitalização das empresas portuguesas. A inépcia administrativa do Estado está assim a prejudicar a situação macroeconómica do país.

O Estado está a falhar no PRR, sobretudo no eixo programático da resiliência e na relação com as empresas privadas. A resiliência concentra 67% dos recursos previstos no PRR – entre os três eixos programáticos (resiliência, transição climática e transição digital) é o de maior dimensão. Todavia, é também aquele que regista uma menor taxa de execução: apenas 3% (377 milhões de euros), ou seja, metade da taxa média geral de execução do PRR (6%, ou 1.007 milhões de euros). É no eixo da resiliência que encontramos, por exemplo, a componente de capitalização e inovação empresarial, onde se insere a (falta de) acção do Banco Português de Fomento, ou a componente da habitação. Dois falhanços do Governo em áreas onde as promessas têm sido mais do que muitas, mas em que os resultados escasseiam. Eufemismo novamente.

Lamentavelmente, às empresas privadas foram pagos apenas 44 milhões de euros, não obstante já terem sido aprovados projectos no valor de 2.560 milhões de euros. Trata-se de uma taxa de execução de 1,7% – menos de um terço da média geral de 6%. Para além dos danos materiais, há um efeito de desmoralização sobre os privados que é inaceitável. Ao invés, no sector público o sentimento está em alta. Não só há agora dinheiro a entrar, depois de anos à míngua, como há também uma quase monopolização dos pagamentos realizados. Dos 1.007 milhões de euros pagos no âmbito do PRR, o sector público recebeu 828 milhões (82,2% do total). Na verdade, recebeu mais do que isso. O Estado português já recebeu da União Europeia 3.300 milhões de euros, entre o adiantamento de 2021 e o primeiro pagamento de 2022. Só falta distribuí-los!

Para a má execução do PRR contribuem essencialmente três obstáculos administrativos.

  • Primeiro, a falta de capacidade interna para despachar as candidaturas e apoios.
  • Segundo, a complexidade dos concursos, mesmo quando são de reduzida dimensão.
  • E terceiro, a falta de automatização na submissão e apreciação das candidaturas.

O primeiro obstáculo resolve-se com a contratação externa de capacidade adicional para atender a picos de trabalho. O segundo com a simplificação administrativa de concursos de baixo valor. O terceiro com uma efectiva digitalização na atribuição dos apoios, a fazer de forma automática e não através da submissão de candidaturas, sempre que as empresas cumpram previamente os critérios de elegibilidade. Em resumo, o sermão de Marcelo foi defeituoso e incompleto, mas não deixou de ter razão.

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