Vitória no Mundial. Um dia de glória para fazer esquecer a depressão na economia argentina
A vitória no Mundial foi uma alegria imensa num país com poucas razões para sorrir: recupera de uma profunda recessão sob resgate do FMI, com a inflação a chegar a 85% e a pobreza a 37% da população.
“Hoje é o momento de pôr o cérebro de molho. Deixar a ressaca para amanhã. Não pensar na malária, na maldita inflação ou na trágica insegurança. Nem na divisão política. Viva, neste momento, o pensamento mágico”, escreveu Pablo Vaca, no editorial do diário argentino Clarín. Palavras que espelham o contraste de emoções de um povo que se sagrou tricampeão mundial de futebol, mas convive com uma situação económica e social dilacerante.
A Argentina é um país flagelado pela hiperinflação. Depois de uma taxa média de 48,4% no ano passado, os dados da agência oficial de estatística indicam que os preços subiram 85,3% nos primeiros 11 meses deste ano, uma das taxas mais elevadas do mundo, que engole salários e poder de compra. Isto apesar dos controlos de preços impostos pelo Governo nos bens alimentares essenciais.
Os últimos dados até trouxeram notícias menos más. A variação dos preços entre outubro e novembro foi de 4,9%, a mais baixa em nove meses, sugerindo que o ritmo estará a baixar. As últimas previsões do FMI não são, no entanto, animadoras, com o fundo a apontar para uma taxa de inflação média de 76,1% no próximo ano, embora com tendência para baixar nos anos seguintes.
Neste cenário, a política monetária é altamente restritiva, como seria de esperar. Entre janeiro e outubro o banco central elevou a taxa diretora dos 38% para os 75%. Desde então que a taxa não mexe, devido justamente à menor variação mensal dos preços.
A economia está a emergir de um profundíssima recessão, que entre 2018 e 2020 tirou 14,5% ao PIB. Em 2021 deu-se a reviravolta, com um crescimento de 10,3%, mas que deverá travar para 4% em 2022 e 2% em 2023, segundo as previsões do último World Economic Outlook do FMI.
Olhando para o mercado de capitais, o país até parece ir de vento em poupa. O Merval, o índice acionista argentino, é o que mais sobe este ano, valorizando 100% em moeda local. Em euros o cenário é um pouco diferente, dada a fraqueza do peso contra a divisa europeia (-38%) este ano, com o desempenho a baixar para 26%. Mesmo assim, muito melhor do que a queda de 13% do índice pan-europeu Eurostoxx 600. Em 2021, os títulos da Bolsa de Buenos Aires já tinha saltado 43%.
O melhor desempenho da economia deverá permitir uma redução da taxa de desemprego, dos 8,7% para os 6,9% este ano, estima o FMI, mantendo-se no mesmo nível em 2023. O que não impede que quase um em cada quatro argentinos seja considerado pobre. Os últimos dados do instituto oficial de estatística (INDEC) colocam a taxa de pobreza nos 36,5% no segundo semestre, menos 0,8 pontos percentuais do que no período homólogo. Cerca de 5,3 milhões de pessoas, o equivalente a 8,8% da população, não tem o suficiente para as despesas básicas de alimentação. Mais de metade das crianças até aos 14 anos vive na pobreza.
A convulsão tem sido uma imagem de marca da economia ou não tivesse o país já entrado nove vezes em incumprimento da dívida. O primeiro data de 1827, 11 anos após o país ter declarado a independência de Espanha. Depois de anos de forte crescimento, com o desenvolvimento da agricultura e um forte investimento nos caminhos-de-ferro, a forte descida do preço das matérias-primas provocou novo incumprimento em 1890, quase levando à falência o britânico Barings.
Depois de nos primeiros anos do século XX ter sido um dos países mais prósperos do mundo, seguiram-se novos defaults em 1951 e em 1956, após a queda de Juan Peron, num período marcado por forte instabilidade política. Depois novamente em 1989, 2001, 2014 e, por fim, em maio de 2020, quando falhou o pagamento de 500 milhões de dólares em juros.
A relação tumultuosa com os credores significa uma relação próxima com o FMI, como acontece atualmente. Em outubro, o fundo autorizou mais 3,8 mil milhões de dólares em financiamento de um pacote total de 44 mil milhões para tentar que o país volte a pôr-se de pé. O cheque veio com elogios ao Governo do presidente Alberto Fernández, do Partido Justicialista, uma força política peronista que em outubro de 2019 bateu Mauricio Macri, do centro-direita. Trazia também alguns recados.
“Em resposta às perturbações do mercado de meados de 2022, a nova equipa económica da Argentina adotou medidas corretivas decisivas que estão a começar a restaurar a confiança e a credibilidade das políticas”, afirmou a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, no comunicado do fundo. Mas acrescentava: “Políticas macroeconómicas prudentes e a implementação firme do programa serão necessárias para abordar a situação ainda frágil, fortalecer a estabilidade e cumprir os objetivos”.
Depois de um défice de 4,5% do PIB em 2021, o resgate do FMI obriga a que o saldo orçamental primário desça para -2,5% em 2022 e 1,9% no ano seguinte. Um passo crítico para moderar “o crescimento das importações, acumular reservas, fortalecer a sustentabilidade da dívida e continuar a reduzir a dependência do banco central no financiamento do défice”, sublinha Kristalina Georgieva. A dívida em percentagem do PIB, que rondou os 80% em 2021, deverá recuar para os 76% este ano.
Como sempre, há uma lista grande de reformas pedidas ao país, como a melhoria da gestão das finanças públicas ou das reservas do banco central, uma maior eficiência na atribuição de subsídios sociais, medidas para o combate à evasão fiscal e branqueamento de capitais. O contexto económico internacional não ajuda, mas o doméstico também apresenta vários riscos.
“A persistência de uma inflação elevada e baixo crescimento pode exacerbar o descontentamento social e enfraquecer o apoio político ao programa”, alerta o FMI. “Estes riscos podem aumentar até às eleições presidenciais de outubro de 2023, se a despesa e a pressão sobre os salários se intensificar e surgirem dificuldades na implementação das reformas na assistência social”, acrescenta.
A vitória no Mundial do Qatar vem dar um ânimo acrescido aos argentinos e pode até beneficiar a Argentina. Segundo um estudo do economista Marco Mello, da Universidade de Surrey, o campeão tende a registar um crescimento acrescido de 0,25 pontos nos dois trimestres seguintes. O que resulta sobretudo do impulso às exportações dado pela maior visibilidade do país e apelo dos produtos nacionais no mercado internacional.
Uma previsão que pouco dirá ao povo argentino, comprimido entre a hiperinflação, as exigências do FMI e um país politicamente fraturado. A obra de Messi e dos seus companheiros permitiu esquecer tudo isto, mesmo por um momento fugaz. “Um dia em estado de graça. Era tudo o que pedíamos. Aconteceu. Merecíamos”, escreveu Pablo Vaca no Clarín.
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