Pedro Pita Barros, professor de Economia da Saúde na Nova SBE, acaba de lançar um estudo sobre financiamento da saúde em Portugal e explica porque a atual realidade não é normal nem desejável.
“Os fundos movimentados pelos seguros de saúde privados não chegam a 4% da despesa total em cuidados de saúde (em 2020). Está-se, por isso, longe de se poder afirmar que os seguros de saúde privados são uma alternativa de financiamento generalizado das despesas em cuidados de saúde”, diz Pedro Pita Barros, em entrevista ao ECOseguros.
Esta é uma das principais mensagens retiradas pelo investigador do Health Economics & Management Knowledge Center e detentor da Cátedra em Economia da Saúde da Nova SBE, do estudo “Seguros de saúde privados no sistema de saúde português: mitos e factos”, elaborado com Eduardo Costa, numa parceria entre a Fundação la Caixa, o BPI e a Nova SBE.
Apesar do elevado crescimento dos seguros e de terem duplicado de importância no financiamento da saúde nos últimos 20 anos, o estudo concluiu que “os pagamentos diretos das famílias continuam num nível muito elevado, sem ter tido qualquer redução sensível nos últimos dez anos” e que apenas “há uma transferência de peso relativo no financiamento do sistema de saúde português dos subsistemas privados para seguros de saúde privados”.
Existe uma equação base para analisar a despesa corrente em saúde que foi elaborada por Pita Barros e Eduardo Costa com base na Conta satélite da Saúde do INE. O Serviço Nacional e os serviços regionais de Saúde apenas contribuíram com 56,3% para o financiamento da saúde em 2020 (58,6% no ano 2000). Outros sistemas e mecanismos de proteção públicos e a Segurança Social pagaram 10,4% da despesa. Os seguros de saúde quase substituíram os subsistemas de saúde privados, setor que no seu conjunto paga mais de 30% das despesas com saúde em Portugal.
O estudo demonstra que o financiamento de saúde por privados apenas mudou de destino. Que o Estado, apesar dos reforços dos seus orçamentos nesta área da saúde, continua a obrigar as pessoas a suportar 27% das despesas de saúde. O SNS está a falhar nas despesas e na extensão e qualidade dos serviços que presta?
Como estes 27% das despesas totais em saúde estão associados a diferentes tipos de despesa, temos situações em que a proteção financeira é menor do que provavelmente deveria ser para algumas despesas. Por outro lado, o SNS não responde a todas as necessidades sentidas pela população. Descodificando, com exemplos concretos.
No caso dos medicamentos, há ainda uma comparticipação que o SNS pede aos cidadãos que é elevada, e com um peso relativo importante para as pessoas de menores rendimentos. É uma questão de cobertura financeira pura. Num outro campo, temos o acesso a cuidados de medicina dentária, onde tradicionalmente o SNS tem estado menos presente do que deveria (apesar de algumas iniciativas na última década terem procurado resolver esta questão, ainda se está longe de a ver resolvida). Neste caso, o SNS está a falhar na garantia de acesso a esse tipo de serviços.
Por fim, temos os serviços que têm listas de espera e em que parte da população procura resolver mais rapidamente os problemas que sente pagando diretamente no setor privado. Aqui o SNS falha no aspeto de tempo adequado. Haverão ainda situações em que as pessoas preferem prestadores privados por motivos de conforto, proximidade geográfica ou tempo de resolução, apesar do SNS poder fornecer esses serviços (exemplo são os nascimentos por cesariana, em data marcada, em unidades privadas). Com o nível de agregação que a Conta Satélite de Saúde tem (por definição da metodologia usada), não é possível sabermos a dimensão de cada uma destas componentes.
Há uma transferência de peso relativo no financiamento do sistema de saúde português dos subsistemas privados para seguros de saúde privados. Qual a explicação para esta mudança?
Sobretudo a decisão empresarial das entidades. Anteriormente assumiam a responsabilidade pela saúde dos seus trabalhadores, de uma forma mais próxima, e passaram para seguros privados essa parte da sua relação com os trabalhadores.
Permite beneficiar de efeitos de redes organizadas especificamente para a prestação de cuidados de saúde e simplifica a gestão destas situações para as empresas (até porque a complexidade dos serviços de saúde disponíveis tem aumentado significativamente face ao que sucedia há 30 ou 40 anos).
O peso dos seguros de saúde privados no financiamento da despesa em cuidados de saúde cresceu consideravelmente, mas os fundos movimentados não chegam a 4% da despesa total em cuidados de saúde. O que trava este desenvolvimento? O peso dos pagamentos obrigatórios dos contribuintes ao Estado use-se, ou não, os serviços de saúde públicos é excessivo?
Há tipos de despesa em cuidados de saúde, de elevado custo, que acabam por não ser cobertos pelos seguros de saúde privados, seja porque não incluem esses serviços, seja por excluírem os principais utilizadores desses serviços (por exemplo, quando se tem limitações de idade ou aumentos de prémio de seguro privado ligados à idade que os tornam pouco atrativos para essa parte da população).
Há também áreas de despesa em serviços de saúde que têm predominantemente pagamentos diretos dos cidadãos (o chamado out-of-pocket) e que as seguradoras privadas não têm procurado cobrir (e com isso crescer mais). Algumas despesas em serviços de saúde têm dificuldades técnicas associadas – a ideia de seguro é que há imprevisibilidade quanto às despesas futuras em cuidados de saúde (num ano, que é o prazo habitual de contratos de seguro).
Ora, quem tiver uma condição crónica, por exemplo, com tratamentos regulares ou despesas regulares (em medicamentos, digamos) deixou de ter essa imprevisibilidade. A condição técnica de base do seguro, diversificação de risco entre a população, deixou de estar presente em grande medida.
Para Portugal, julgo ser razoável afirmar-se que os 27% de pagamentos diretos (por parte das Famílias) são excessivos
Os seguros de saúde privados não ocuparam o espaço de cobertura de despesa associado com maior peso dos pagamentos das famílias no momento de utilização de cuidados de saúde: os pagamentos diretos das famílias continuam num nível muito elevado, sem ter tido qualquer redução sensível nos últimos dez anos. Quais as áreas que Estado e privados estão a evitar?
Incluem-se aqui áreas como os medicamentos receitados e comparticipados parcialmente pelo SNS, que são ainda uma componente importante da despesa das famílias de mais baixos rendimentos – apesar de ser pouco conforto, é um aspeto que o sistema de saúde português partilha com muitos outros países europeus –, consultas e exames diversos obtidos mais rapidamente se realizados no setor privado, incluindo eventualmente também alguma cirurgia, e alguma componente de conforto e escolha adicional que o setor privado permite (como a programação de partos em unidades privadas).
As companhias que oferecem seguro de saúde privado não aproveitaram a falta de cobertura financeira de muitas despesas em cuidados de saúde para expandir a sua atividade. Será a parte economicamente mais desinteressante dos cuidados de saúde. Nesta parte é recomendável a existência de coberturas por seguros co-participados pelo Estado para redução do valor dos prémios?
Não. A resposta deverá ser, em primeiro lugar, por capacidade resolutiva por parte do Serviço Nacional de Saúde. A fragmentação de apoios públicos é suscetível de criar problemas de coordenação de cuidados de saúde e custos de gestão adicionais. Além de que a existência de seguros, co-participados pelo Estado, para alguns aspetos acabaria por desresponsabilizar o SNS de garantir o tipo de cuidados de saúde abrangidos para toda a população.
Questão diferente é saber se o SNS deveria utilizar, de forma diferente, a capacidade total existente no sistema de saúde português, com recurso – em condições a definir e que fossem vantajosas para todas as partes envolvidas –, ao setor privado, enquanto não conseguir ter capacidade própria, ou como forma de gerir picos de procura.
as taxas moderadoras, sendo politicamente atrativas para discussão, não são o elemento central nas despesas das Famílias
Em relação à partição principal do financiamento das despesas com saúde: Estado 57%, Seguros 4% das famílias. Qual seria a proporção ideal? Quais as melhores práticas no mundo?
Não há propriamente uma proporção ideal, igual para todos os países. Em geral, a discussão internacional aponta para que os pagamentos diretos das famílias sejam por volta dos 10%. E se um sistema de saúde tem como base o setor público (Serviço Nacional de Saúde), então os seguros privados de saúde, quando o setor público funciona adequadamente, deverá ser pequeno (inferior a 5% das despesas totais). Em sociedades onde haja maior tolerância ao risco e maior capacidade das famílias enfrentarem despesas inesperadas de saúde, os pagamentos diretos tenderão a ser mais elevados, como consequência das preferências da sociedade. Para Portugal, julgo ser razoável afirmar-se que os 27% de pagamentos diretos são excessivos.
O Artigo 64.º da Constituição, no seu ponto 2.a), afirma que “(o direito à proteção da saúde é realizado) através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”. A situação atual com 27% de despesas de saúde, estável desde há 20 anos, corresponde aos objetivos nacionais?
Não. E esta situação deveria motivar um esforço de reflexão sobre os elementos de cobertura financeira (em vez de insistir nas taxas moderadoras, que sendo politicamente atrativas para discussão, não são o elemento central nas despesas das famílias).
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Seguros pagam apenas 4% das despesas de saúde. Famílias pagam 27%
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