Mariana Mortágua, do BE, afirma que os proprietários devem ser obrigados a pôr no mercado as casas vazias e que tem de haver um controlo no preço das rendas.
O Bloco de Esquerda tem uma visão diferente da do Governo em matéria de habitação. Em entrevista ao ECO, Mariana Mortágua diz que o Executivo “não consegue apresentar uma ideia que baixe os preços” das casas no país e que “todas as promessas” do Governo neste campo são “perfeitamente ficcionais”. Construir habitação pública é uma ajuda, mas não é isso que vai resolver o problema, diz a deputada, defendendo a imposição de um teto máximo às rendas e a obrigatoriedade de os privados colocarem os imóveis no mercado de arrendamento perante a atual crise que existe.
Mariana Mortágua aponta ainda o dedo aos programas de renda acessível pensados pelo Governo, mas também pelas autarquias, por considerar que essa não é uma solução. “Temos o dinheiro de todos os contribuintes a servir para financiar a especulação e financiar rendas que não têm nenhuma razoabilidade”, explica. Impedir o investimento estrangeiro e o excesso de alojamento local são outras das bandeiras dos bloquistas.
Depois da entrevista do primeiro-ministro, na segunda-feira, disse que “quem ouvir António Costa não tem qualquer horizonte de uma vida melhor”. Isto também se aplica à habitação?
Aplica-se, sobretudo, à habitação. A habitação, neste momento, é um travão a uma vida digna, uma vida decente, e nem é preciso explicar porquê. As pessoas não encontram casa, pura e simplesmente. E o primeiro-ministro não consegue apresentar uma ideia que baixe os preços da habitação. Não existe uma ideia. Aliás, o primeiro-ministro trata o assunto como se tivesse chegado agora o problema, quando insiste em manter leis que só agravam o problema, como é o caso das leis dos fundos imobiliários, dos vistos gold ou dos residentes não habituais.
Qual é o principal problema da habitação em Portugal?
Há várias razões para isso, é uma conjugação de fatores. Em geral, tem a ver com o facto de ter crescido muito o apetite dos investidores internacionais pelo imobiliário, até por causa das políticas dos juros baixos e etc. O imobiliário tornou-se um ativo financeiro, digamos assim, e por isso é que os preços aumentaram por toda a Europa e por todo o mundo. E esse apetite pelo imobiliário como um ativo financeiro encontrou em Portugal uma política que incentivava isso mesmo. E incentivou de várias formas, porque, basicamente, ocorreu tudo ao mesmo tempo.
Veio uma lei de regulamentação das rendas — Lei Cristas — que facilitou os despejos e permitiu que prédios inteiros fossem despejados em nome das tais obras de reabilitação, e isso foi um primeiro passo que ajudou a limpar os prédios dos seus habitantes. Houve a política de vistos gold para atrair não residentes ricos; houve uma nova política de fundos de investimento imobiliário para facilitar a constituição de investimento imobiliário, isentando-os de impostos; uma política de facilitação de alojamento local sem qualquer tipo de restrição; e uma política de residentes não habituais.
Foi criado um incentivo para, no fundo, exportar e vender habitação. E isto fez com que os preços da habitação se tornassem preços que, em vez de serem adequados ao mercado interno, são adequados ao mercado externo.
Fora a própria propaganda no Governo, que incentivava isso. Foi criado um incentivo para, no fundo, exportar e vender habitação, torná-la num ativo financeiro que pudesse ser exportado, e isto fez com que os preços da habitação se tornassem preços que, em vez de serem adequados ao mercado interno, são adequados ao mercado externo, dos fundos de investimento, dos cidadãos mais ricos e com salários do exterior, profissões muito bem pagas, fortunas estrangeiras, etc. Por isso é que, se compararmos na OCDE a diferença entre ganhos em Portugal e preços das casas, Portugal é dos piores países na OCDE.
Há agora um ministério dedicado exclusivamente à habitação. Quais são as suas expectativas?
Não tenho expectativa nenhuma. Por uma razão muito simples. Nós conhecemos as propostas do Governo, a nova ministra acabou de apresentar na Assembleia da República um plano para a habitação, que não é mais do que reiterar o que tem sido feito até agora.
Há um problema que eu acho que toda a gente compreende: é óbvio que uma construção de habitação pública é importante, ninguém lhe retira importância, só que a política de construção de habitação pública não vai fazer descer os preços das casas. Nem na dimensão nem no tempo das nossas vidas. E as pessoas precisam de uma casa já, não é daqui a 20 anos.
Todas as promessas do Governo são perfeitamente ficcionais, são no campo da ficção. O Governo prometeu um parque público de 25 mil casas, que dizia que ia responder às necessidades mais urgentes, mas depois perceber que as necessidades mais urgentes eram muito mais do que 25 mil casas, sendo que essas casas não foram construídas. Depois disse que ia ter casas a rendas controladas na ordem das 130 mil casas. Nem 3.000 casas tem. Um Governo não é avaliado pelas suas intenções, mas sim pelo que faz. E este Governo não está a fazer nada para combater o problema e não está a fazer nada de tal forma que o preço só sobe.
Apesar de haver um ministério novo, não se vislumbram novas medidas para a habitação. O que tem sido anunciado ajuda? O que é que deveria ser feito?
Não se faz só por aqui, nós temos consciência disso. É preciso um conjunto de diferentes políticas. Por exemplo, neste Orçamento do Estado [2023] apresentámos um grande pacote de medidas para habitação, que visava, precisamente, acabar com uma série de benefícios fiscais que existiam nos fundos de investimento, nos residentes não habituais, nos vistos gold, etc.
É preciso intervir em vários campos. No campo das políticas que, neste momento, estão a atrair esses investidores estrangeiros e que sobem os preços, e aí é acabar com os incentivos que neste momento existem. Alguém dizia, com muita razão, que nós gastamos mais em benefícios fiscais para residentes não habituais do que gastamos a construir habitação pública. Repare na contradição desta política. Gasta-se mais dinheiro a atrair residentes não habituais com benefícios fiscais maravilhosos do que a ter uma política de habitação pública para quem cá vive.
É preciso, para já, eliminar esses incentivos errados que estão na lei. E, em segundo, é preciso alterar a lei das rendas, tem de haver muita maior proteção. Estamos a trabalhar e temos algumas propostas em preparação sobre isso.
Gasta-se mais dinheiro a atrair residentes não habituais com benefícios fiscais maravilhosos do que a ter uma política de habitação pública para quem cá vive.
O que é que propõem?
É preciso alterar a duração dos contratos de arrendamento. O mínimo neste momento são três anos, mas é possível fazer contratos de um ano. E o que acontece com os contratos não renováveis, no final do prazo, é que as rendas aumentam sem qualquer controlo. E isso está a trazer aumentos brutais. Portanto, é preciso dar maior estabilidade e duração aos contratos e controlar e condicionar o aumento desmesurado das rendas. Nada disto tem a ver com o congelamento de rendas que se viu no passado — essa proposta, aliás, traumatizou o país, e com razão, porque não fazia sentido –, mas isso não quer dizer que não tenha de haver alguma espécie de controlo de rendas — muitos países estão a fazê-lo e é preciso pensar nisso.
Mas quanto à proposta de impedir a compra de casas por não residentes, chamo a atenção que, no caso da proposta do Bloco, é para pessoas não individuais, mas também para pessoas coletivas. E vai até ao beneficiário último. Está pensado, precisamente, como uma forma de travar grandes fundos de investimento internacionais de entrarem por aí.
Mas quando se fala em limitar os compradores internacionais, e aqui inclui-se o travão aos vistos gold, o setor alerta para a perda brutal de investimento que isso traria.
O setor não pode alegar outra coisa, porque vive disso. O setor vai sempre alegar que os investidores internacionais não têm impacto, mas a verdade é que têm. Se não tivessem impacto nenhum não haveria vistos gold. Os vistos gold só existem no imobiliário, não têm qualquer outro impacto. E, portanto, tanto têm impacto que continuam. Se não tivessem impacto não continuavam.
Os próprios números são muito reveladores: a maior parte das casas compradas através de vistos gold estão em Lisboa, no Algarve e no Porto. E, como é lógico, isto tem impacto no mercado, porque sobe muito os preços. Em 2007, 80% das casas eram compradas com crédito bancário, em 2019 esse valor passou para 40%. Quem é que compra casas sem recorrer a crédito bancário? Ou são estrangeiros ou são fundos. Não vale a pena estar a dar a volta à situação. É a conjugação de todas as políticas, dos residentes não habituais e dos vistos gold, que cria este tipo de pressão para aumento dos preços.
Sem esquecer que depois há outra vertente que é a do alojamento local, completamente desmesurado. E depois dizem que as estatísticas a nível nacional mostram que não é assim tão importante. Tudo bem, mas vão ver no concelho de Lisboa e do Porto. Estamos a criar cidades gentrificadas, onde as cidades são para o turismo e para quem tem dinheiro para viver e as pessoas depois pagam balúrdios por uma casa. Não faz sentido.
Mas já foi implementada uma série de travões ao alojamento local, sobretudo em Lisboa e no Porto.
O problema desses travões é que dizem que, nas zonas de contenção, o alojamento local não pode ser mais do que 20%. Só que o alojamento local já está em 60% em algumas zonas. Porque os travões impedem de subir, mas não obrigam a descer. E quando os travões foram feitos, havia muitas freguesias que já estavam muito acima dos travões. E como não há possibilidade de caçar as licenças, nem ninguém tem coragem de dizer que aquelas pessoas têm de mudar os seus prédios para habitação, a maior parte das freguesias continua acima das normas-travão.
Os travões dizem que, nas zonas de contenção, o alojamento local não pode ser mais do que 20%. Só que já está em 60% em algumas zonas. Porque os travões impedem de subir, mas não obrigam a descer.
E o que é que o Bloco defende neste campo?
Temos uma solução um pouco mais clara relativamente a isso e já a propusemos: as casas que estão destinadas a habitação no seu registo não podem servir um propósito que não seja habitação.
Quem quisesse entrar no alojamento local não o poderia, de todo, fazer?
Há zonas da cidade em que não deveria ser possível, de todo. Alguém que tenha uma casa própria, que saia uns meses no verão e que queira pôr a casa a alugar, não há nenhum problema com isso. O problema é ter casas para alugar em alojamento local, porque retira casas do mercado que poderiam estar arrendadas para habitação. Sobretudo quando o título dessa casa diz que essa casa tem um fim destinado à habitação. E nós achamos que as casas destinadas à habitação não poderiam servir um fim que não habitação.
Se alguém quer abrir um hotel, que construa um hotel, se alguém quer abrir um alojamento local, vai ter de mudar o registo dessa habitação. Mas tem de haver regras e as cidades têm de ter regras para a quantidade de alojamento local. Não achamos que a regra em Lisboa deva ser igual à regra de uma aldeia que precisa de atrair residentes e turismo. É legítimo que as pessoas queiram ter alojamento local e fazer um negócio de turismo, mas não podem fazê-lo nas cidades onde exista um problema de habitação.
A aplicar-se isso, o que aconteceria aos registos atuais?
A maior parte dos registos atuais está para habitação. Por isso é que houve o acórdão [do Tribunal de Contas] que dizia que uma casa para habitação devia ser para esse fim. E o que defendemos na altura é que essas casas fossem obrigadas a mudar o seu registo.
O setor diz que havendo esses limites, e tendo em conta os impostos do arrendamento, os proprietários iriam preferir ter os imóveis vazios e não os colocar no mercado de arrendamento.
Alguém que, por mera retaliação, mantém um imóvel fora de mercado, numa altura em que há uma crise de habitação, tem de ser obrigado a pôr o seu imóvel a arrendar. Está a ir contra o interesse público.
Pôr o Estado a financiar uma parte da renda seria uma hipótese?
Isso é o que já faz. O Porta 65 Jovem é isso. O que a Câmara de Lisboa está a fazer, juntamente com o Porta 65, é o Estado a financiar uma parte da renda. E o que está a começar a acontecer é que nós temos rendas completamente estapafúrdias para o nosso país e o Estado gasta cada vez mais dinheiro a subsidiá-las. Em vez de termos um mercado de arrendamento com preços decentes, temos o dinheiro de todos os contribuintes a servir para financiar a especulação e financiar rendas que não têm nenhuma razoabilidade. É lógico que, no curto prazo, essa ideia é a única possível. Mas temos de ter noção do que estamos a falar. Se os preços continuam a subir e se a solução é o Estado financiar as rendas de mercado, temos o nosso dinheiro dos impostos a servir para pagar preços especulativos das casas. E não acho que essa possa ser a solução.
Em vez de termos um mercado de arrendamento com preços decentes, temos o dinheiro de todos os contribuintes a servir para financiar a especulação e financiar rendas que não têm nenhuma razoabilidade.
Tudo porque o Estado não quer intervir no mercado, não quer acabar com os incentivos nem com os benefícios fiscais, não quer controlar as rendas, etc. Portanto, temos a sociedade a trabalhar para os proprietários. A maior parte deles fundos de investimento e grandes empresas, nem sequer nacionais. Isto é um problema de distribuição de rendimentos e riqueza, em que um país trabalha para sustentar um setor que é especulativo e que está a apropriar-se de uma parte dos rendimentos da sociedade. Não me parece que essa possa ser a solução.
Aplicar um teto máximo às rendas poderia ser uma solução? Não faria aumentar o número de casas vazias?
A ideia de que as casas ficariam por desocupar está por provar. Isso até agora é só uma ameaça. Há proprietários que dizem que se descerem um bocado as rendas empobrecem, mas têm dinheiro para manter as casas fechadas? Se um proprietário pode manter casas fechadas só para manter uma guerrilha, é porque não precisa do dinheiro das rendas. Esse argumento é puramente teórico e não pode ser levado a sério. Serve apenas para fazer guerrilha política.
Quanto à medida de controlo de rendas, é uma boa medida. Tem de ser bem estudada e calibrada. O que está em causa não é um regresso ao congelamento das rendas que veio desde Salazar, foi uma má política, que agora prejudica a capacidade de regular rendas. Mas o que sabemos é que mais de metade dos países da União Europeia e da OCDE têm qualquer tipo de controlo de rendas e Portugal não tem nenhum. O desastre que temos na habitação é o desastre do liberalismo no mercado. E agora temos de regular uma parte do mercado e ter alguns controlos como temos noutros setores.
E como é aplicariam esse limite máximo às rendas?
Isso tem de ser bem pensado. Estamos a trabalhar nisso e defendemos que esse é o caminho razoável. E que, ao contrário das propostas do Governo, permite baixar o preço da habitação.
Em Câmaras como Lisboa e Porto, deveria haver uma maior interação entre os programas públicos e autárquicos?
Isso seria algo prejudicial, porque o Governo passa cada vez mais decisões para as autarquias e as autarquias têm um interesse particular em muitos destes mercados, porque isto é receita de IMI e IMT. E depois não permite ter uma política coerente em todo o território nacional. Nesse sentido, penso que, precisamente, a articulação entre o Estado central e as autarquias tem servido para que nada se faça, quando era preciso ter políticas mais coordenadas. Neste momento, essa descentralização, essa passagem das decisões para as autarquias, em vez de ter dado os frutos de ter as autarquias a tomar boas decisões para protegerem o seu território, acabou por desresponsabilizar o Governo central, ao mesmo tempo que as autarquias tomam decisões completamente contraditórias entre si.
Por exemplo, uma autarquia tem o poder para definir zonas de contenção, mas não o poder para caçar licenças [de alojamento local]. Logo, o que acontece é que há zonas que já estão acima do limite de contenção, mas não conseguem fazer nada em relação a isso. Há aqui uma desarticulação muito grande e que tem beneficiado o caos que se vive na habitação.
No âmbito do PRR, o Governo definiu como objetivo construir 26 mil casas até 2026. Faltam três anos.
O Governo estabeleceu objetivos que eram impossíveis de cumprir, para fins de propaganda, e agora está a deparar-se com os problemas normais. É preciso licenças, lançar obras, adjudicar obras, etc. Todo o mercado de construção se virou para a reabilitação, porque a reabilitação tem muitos incentivos fiscais e muito maior valor. Até o mercado da construção se virou para os setores de luxo em vez da construção. Quando se diz que o problema é a falta de construção, pergunto: Porque é que há menos construção agora do que nos anos 90? Não há mais burocracia agora, nem mais impedimentos. As leis são basicamente as mesmas. O problema é que as empresas de construção se viraram para os setores de luxo e reabilitação, porque foram esses os incentivos que foram criados.
Não tenho críticas à vontade do Governo de construir 26 mil casas. O que digo é que essas 26 mil casas não vão resolver o problema da habitação em Portugal.
Não tenho críticas à vontade do Governo de construir 26 mil casas. O que digo é que essas 26 mil casas não vão resolver o problema da habitação em Portugal. Repito: a construção nova não vai resolver o problema da habitação. Não só porque vai sempre demorar muito tempo, como também porque são sempre soluções aparentemente fáceis. Estamos a perder população. Não precisamos de mais casas, precisamos é de ter casas acessíveis nos sítios onde as pessoas trabalham e querem viver. Não é empurrar pessoas para novos bairros construídos nas periferias das cidades que vai resolver o problema da habitação. O que se vai fazer é criar mais problemas ambientais e sociais.
E como é que se consegue “casas acessíveis nos sítios onde as pessoas trabalham e querem viver”?
Controlando rendas, impedindo o investimento estrangeiro, impedindo o excesso de alojamento local, fazendo com que os centros urbanos sejam para as pessoas morarem e não montras de habitação de luxo e apenas de turismo.
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“Política de construção de habitação pública não vai fazer descer os preços das casas”
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