Injustiça social e salarial

Os salários publicados do INE revelam a enorme injustiça social em Portugal. Ganham mais os que colocam o serviço à sociedade em segundo plano e ganham menos os que os que servem a sociedade.

O INE publicou os salários praticados em Portugal no 4º trimestre de 2022. Os valores mostram que um trabalhador do Estado recebe em média um salário bruto de 2.154€, ou seja, mais 776€ ou mais 56% do que o salário médio de 1.378 € praticado no sector privado.

A pergunta que se coloca de imediato é se estes salários estão de acordo com o desempenho destes trabalhadores e com o que contribuem para a sociedade e para o bem comum dos portugueses? Por outras palavras, se eles são socialmente justos?

Uma hipótese que poderá surgir no pensamento de muitos é que os salários deveriam ser iguais. Contudo, uma vez que uns trabalham mais do que outros, uns trabalham melhor do que outros, uns contribuem mais para o bem comum do que outros, uns dedicam-se mais do que outros, uns têm mais sorte do que outros, a igualdade salarial seria sempre socialmente injusta. Além de injusta, seria impossível de implementar numa sociedade livre.

Por isso, os salários iguais não são uma resposta para a procura de justiça social. Dito de outra forma, uma condição para haver justiça na nossa sociedade é que os salários sejam desiguais. É verdade que os salários que o INE publicou são desiguais. Contudo, isso só por si não significa que sejam socialmente justos. A desigualdade é uma condição necessária, mas não suficiente para que os salários sejam socialmente justos.

Para podermos concluir sobre justiça salarial é necessário interiorizar conceitos e desfazer equívocos.

Primeiro, a dicotomia público-privado separa o que é do domínio da vida em relação a todos os outros ou o que é domínio da vida própria de cada um. Uma empresa que venda parafusos desenvolve uma actividade pública, pois a sua produção destina-se a fornecer à sociedade um bem que é necessário. O mesmo acontece com uma escola privada que fornece um serviço de educação que é público, não é privado. Público é o que se destina à sociedade e é parte do bem comum, podendo ser fornecido por qualquer pessoa.

Segundo é que sociedade e Estado não se confundem nem são a mesma coisa. A sociedade é composta por todos os portugueses e abrange tanto a sua acção pública como a privada. O Estado desenvolve apenas uma parte da actividade pública cuja razão primeira é a garantia do funcionamento livre da sociedade. O Estado não tem a exclusividade da actividade pública e os seus funcionários exercem uma acção pública quando trabalham, mas desenvolvem uma acção privada nas suas relações familiares, por exemplo.

Por isso, não só sociedade e Estado não se confundem, como público não coincide com Estado nem privado com sociedade. São dimensões diferentes e separadas que em alguns aspectos se sobrepõem, mas que nunca coincidem totalmente. A ideia de que “Estado” e “público” são uma e a mesma coisa é muito comum, mas é falsa e, pior ainda, enganadora.

Esta ideia falsa tem origem no equívoco de Rousseau quando refere que é o Estado que decide quais são as liberdades de que as pessoas devem prescindir para não contrariar a “vontade geral”. A “vontade geral” não é mais do que a secundarização da liberdade face à burocracia, i.e., uma forma de dizer que a vontade da sociedade tem de se sujeitar ao Estado e aos que o representam, o governo. E é uma ideia que contrasta fortemente com Locke, em que o Estado existe para garantir a liberdade, estando dessa forma ao serviço da vontade da sociedade.

O significado de “estar ao serviço de” é por isso muito importante. “Primeiro-Ministro” quer dizer “Primeiro-Servidor”. Mas “estar ao serviço de” não depende do cargo ou da função, mas da actividade desempenhada. Basta pensar que quem trabalha no Estado não está muitas vezes ao serviço da sociedade. Por exemplo, quando o primeiro-ministro toma decisões, viaja ou faz declarações a pensar no cargo que gostaria de ter em Bruxelas, ou se recusa a demitir governantes ou dirigentes incompetentes, como os que perderam o lugar nos últimos meses e que estavam a usar o Estado para benefício próprio. Nestes casos, o primeiro-ministro está a servir-se do Estado para seu benefício e não está a servir a sociedade.

O serviço à sociedade dos trabalhadores do Estado é um princípio basilar de uma sociedade livre que geralmente é esquecido ou ignorado. Em Portugal, no entanto, prevalece a lógica “Rousseauniana” de que o Estado existe para gerir as nossas vidas, como se observou recentemente na pandemia. Como a liberdade responsável não é suficientemente valorizada no nosso país, os que se apropriam dos meios do Estado têm margem para deles abusar, e quando isto acontece muda-se de ”estar ao serviço de” para “servir-se da” sociedade.

Dito isto, o que se espera numa sociedade livre e descentralizada é que sejam os que prestam um melhor serviço à sociedade os que recebem melhores salários. O melhor serviço é o que é útil e necessário à sociedade, mas não é claro quem o presta um melhor, se os funcionários do Estado que garantem serviços de justiça ou os trabalhadores do sector privado que fornecem alimentos essenciais, por exemplo.

O que sabemos é que em ambos os casos há funcionários bons e competentes e funcionários maus e incompetentes. E sabemos também que há três grandes diferenças no que se refere às consequências da existência de maus funcionários:

  1. Se os funcionários privados forem incompetentes podem perder uma componente variável do seu salário (prémios ou comissões) e podem perder o seu emprego.
  2. No caso dos funcionários do Estado incompetentes, não só não perdem a componente variável do seu salário, habitualmente inexistente, como continuam a ganhar exactamente o mesmo dos funcionários competentes com o mesmo nível remuneratório. Além disso, também não perdem o emprego, que lhes está garantido para a vida.
  3. No primeiro caso, o custo da incompetência é inteiramente suportado pela riqueza criada pelo empregador privado, e no segundo o custo da incompetência não é suportado pelo empregador, o Estado, mas pela mesma riqueza que é criada pelo sector privado.

As diferenças são ainda mais relevantes sempre que o funcionário do Estado não dá primazia ao serviço à sociedade, mas privilegia o seu interesse próprio ou os interesses dos governantes. Infelizmente, esta situação tornou-se frequente desde que as nomeações são feitas com base na confiança política ou na disponibilidade dos nomeados para serem “bonecos” que apenas abanam a cabeça e dizem que “sim”. O que acontece na prática é que são os que fazem que “sim” com a cabeça que recebem os melhores salários e os que estão ao serviço da sociedade os que são mais mal remunerados.

O que se conclui, por tudo isto, é que os salários publicados do INE revelam a enorme injustiça social que existe em Portugal porque estão invertidos. Ganham mais os que colocam o serviço à sociedade em segundo plano e ganham menos os que servem a sociedade. E ganham mais os que no Estado beneficiam de um prémio por estarem parcialmente isolados do mercado, e ganham menos os trabalhadores do sector privado a quem se retira a riqueza que criam para pagar impostos e sustentar o Estado e os seus funcionários. Em Portugal, a política de altos impostos seguida pelo governo é a política de baixos salários para os trabalhadores do sector privado.

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