A corrida global às armas

O rasto do aumento dos gastos em defesa evidencia a perceção de uma crescente ameaça estratégica em vários pontos do globo, com os países a preparem-se para um potencial conflito.

Um ano depois do início da guerra, a Ucrânia resiste heroicamente como símbolo da liberdade, mas é um país devastado, o fascismo de Putin condenou a Rússia a um profundo atraso e deixará uma eterna ferida na alma do seu povo, o mundo enfrenta múltiplas crises, algumas que já vinham de trás, mas que se agudizaram depois de 24 de fevereiro de 2022.

As pressões inflacionistas foram ateadas ainda na segunda metade de 2021, com o recuo da pandemia, mas propagaram-se sem controlo com a crise energética provocada pela invasão russa e as sanções, levando a uma inversão tardia, e por isso mais brutal, da política monetária. As consequências económicas foram mais gravosas na Europa: o Berenberg estima que o PIB da Zona Euro em 2024 ficará 5,5% abaixo do que poderia ser caso não existisse o conflito.

O mundo tornou-se também mais belicista. Disputas latentes reacenderam com o rastilho na Ucrânia, grandes potências abandonaram o seu posicionamento pacifista e um pouco por todo o globo assiste-se a uma corrida às armas.

Os gastos com equipamento e pessoal chegaram aos dois biliões de dólares no ano passado, segundo dados do Military Balance 2023, elaborado pelo International Institute for Strategic Studies (IISS). No espaço de cinco anos, a despesa aumentou 17,8%. Se descontarmos o efeito da inflação, pode até falar-se numa queda em 2022, mas que é explicada em grande parte pelo facto de nos EUA a despesa ter caído 5,8% em termos reais. O valor nominal, de 766 mil milhões de dólares, o maior do mundo, pouco mexeu em relação ao ano anterior.

A Europa, por razões óbvias, regista um crescimento nominal expressivo, que se prolongará pelos anos seguintes. De acordo com o IISS, só a Rússia aumentou os gastos militares em 23,6% face ao orçamento inicial em 2022, o equivalente a 87,8 mil milhões de dólares, para manter uma guerra que se prolongou muito além do previsto. Nos meses após a invasão, cerca de 20 países do Velho Continente comprometeram-se a aumentar a despesa.

A Alemanha mudou de paradigma afastando-se, ainda que com alguma relutância, da doutrina pacifista dominante no país após a Segunda Guerra Mundial. O chanceler, Olaf Scholz, anunciou em fevereiro de 2022 que o país iria aumentar o orçamento das forças armadas para 2% do PIB, o que por si só dará às Bundeswehr o terceiro maior envelope financeiro atrás dos EUA e China. Além disso, foi criado um fundo adicional de 100 mil milhões para modernizar as forças armadas. Outro exemplo é a Polónia, que anunciou um aumento do orçamento da Defesa de 2,2% em 2022 para 3% do PIB este ano.

Investimentos necessários. Se a invasão mostrou um exército russo incapaz, também pôs a nu uma Europa impreparada para o pior, com material de guerra obsoleto ou sem condições para operar e falta de munições para manter um conflito prolongado. A modernização, forçada, está agora em curso.

A tensão também cresceu na Ásia. O conflito na Ucrânia é uma placa de petri para Pequim, onde estuda reações, consequências e caminhos numa eventual tomada de Taiwan pela força. Só em 2022, a China aumentou os gastos militares em 7%, um acréscimo equivalente a 16 mil milhões de dólares, o maior aumento nominal de sempre. Do outro lado do estreito, a despesa subiu perto de 15%, foi alargado o serviço militar obrigatório para 12 meses e cresce o número de reservistas.

A ação desencadeia uma reação. Perante as intenções imperialistas chinesas e a ameaça crescente da Coreia do Norte, também o Japão abandonou a doutrina pacifista, em que os gastos militares obedeciam apenas a uma lógica de auto-defesa. O país anunciou um aumento de 20% no orçamento deste ano e uma nova Estratégia de Segurança Nacional, com o objetivo de duplicar a despesa de 1% para 2% do PIB até 2027. A China representa “um desafio estratégico sem precedentes e o maior” para a paz e a segurança do Japão e da comunidade internacional, justificou o Governo.

Ainda no xadrez da Ásia-Pacífico, as Filipinas, agora sob o comando de Ferdinand Marcos Jr. e que têm uma disputa com Pequim por causa do Mar do Sul, reaproximaram-se dos EUA, concedendo acesso a novas bases militares. A Coreia do Sul continua também a expandir os gastos militares, assim como a Austrália, que está a desenvolver uma frota de submarinos nucleares com EUA e Reino Unido.

O mundo arma-se noutras paragens. A Arábia Saudita revelou em dezembro que o seu orçamento da defesa para 2022 foi revisto em alta, aumentando 43% face ao previsto, para o equivalente a 65,3 mil milhões de dólares. Um novo recorde. Nenhuma outra área orçamental cresce tanto e a tendência mantém-se este ano, tendo já sido anunciado um crescimento de 5,7%. Incrementos que marcam uma clara inversão na política de contenção dos anos anteriores e que são mais um ingrediente no esforço de Mohammed bin Salman em afirmar o papel da Arábia Saudita como a grande potência regional e engrossar a sua voz no plano internacional.

Não é de admirar que as empresas de armamento estejam entre as que mais sobem em bolsa, com os investidores a posicionarem-se para os lucros atuais e futuros. As empresas pertencentes ao Complexo Industrial Militar Americano (Lockheed Martin, Raytheon, General Dynamics, Boeing e Northrop Grumman), valorizam 15% em média no último ano, como assinala esta sexta-feira o ECO. A alemã Rheinmetall, que produz os famosos tanques Leopard 2, disparou 158% no espaço de um ano.

O rasto do aumento dos gastos orçamentais evidencia a perceção de uma crescente ameaça estratégica em vários pontos do globo, com os países a preparem-se para um potencial conflito, seguindo um padrão que a história nos ensinou a temer. Ainda que o aumento do custo da dívida possa conter os esforços orçamentais e os Governos tenham outras urgências a que acudir, a Defesa subiu claramente na escala das prioridades.

Arsenais maiores podem ajudar a criar equilíbrios que funcionam como dissuasor, mas também aumentam o risco de um desastre, até mesmo involuntário. Doze meses depois dos primeiros mísseis russos terem caído sobre as cidades ucranianas, a Terra é um lugar mais perigoso e será-o ainda mais no futuro.

Nota: Este texto faz parte da newsletter Semanada, enviada para os subscritores à sexta-feira, assinada por André Veríssimo. Há mais para ler. Pode subscrever a Semanada aqui.

E na próxima semana?

  • Eleições na maior economia de África

Este sábado realizam-se as eleições presidenciais na Nigéria, o país com mais população e o PIB mais elevado de África. Os principais candidatos são Bola Ahmed Tinubu, antigo governador de Lagos e candidato do partido Congresso Progressista para Todos, no poder; Atiku Abubakar, do Partido Democrático do Povo; e Peter Obi, do Partido Trabalhista, que pela primeira vez desde o regresso da democracia, em 1999, ameaça do domínio que tem sido dividido pelos outros dois partidos. Popular nas sociais, Obi tem capitalizado a crise e a elevada taxa de desemprego entre os jovens, que supera os 40%.

  • Confiança na Zona Euro

A semana começa com a divulgação dos índices de confiança do consumidor, da indústria e dos serviços relativos a fevereiro. É esperado que os dados indiquem uma melhoria do sentimento económico.

  • Dados frescos da inflação

A primeira estimativa da evolução dos preços no consumidor em Portugal no mês de fevereiro será divulgada na terça-feira (8,3% em janeiro). O mesmo acontece em Espanha e França. Na quarta-feira, é a vez da Alemanha, sendo esperado um alívio muito ligeiro para os 9%. No dia seguinte sai o dado para o conjunto da Zona Euro, com os economistas a anteciparem uma descida de 8,6% para 8,1%.

  • PIB no quarto trimestre de 2022

Depois da estimativa rápida em janeiro, que apontou para um crescimento de 3,1% em termos homólogos da economia nos últimos três meses de 2022, o INE divulga na terça-feira as contas nacionais com mais detalhe.

  • Contas do BCP

O banco divulga as contas anuais de 2022 na segunda-feira. Está prevista também a divulgação dos resultados da Semapa. Quarta-feira será a vez da EDP e Mota-Engil, seguindo-se a Caixa Geral de Depósitos na quinta-feira.

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