Como o governo lesa os trabalhadores

O que o governo quer agora aprovar é que a diferença entre os salários mensais dos trabalhadores e dos funcionários públicos passe de 684 € para mais de 800 €. Não é pouca coisa.

Esta semana soubemos que António Costa se prepara para asfixiar ainda mais os portugueses e aumentar a carga fiscal para subir os salários de cerca de metade dos funcionários públicos (declaração de interesses: sou funcionário público). Tudo em nome da continuação no poder e da sua ambição por um cargo internacional.

A justificação dada para o aumento é que houve trabalhadores que tiveram as carreiras congeladas entre 2005 e 2007 e entre 2011 e 2017 por causa de inúmeros erros de sucessivas governações socialistas. Para compensar os disparates, o governo socialista pretende ignorar o mesmo sistema de avaliação dos funcionários (SIADAP) que diz estar a rever, ainda antes de terminar a dita revisão, e tirar mais uns milhões de euros aos trabalhadores do sector privado para os entregar aos funcionários públicos.

É justo? A acreditar pela recente publicação do Instituto Nacional de Estatística é mesmo muito injusto. O INE comparou as condições salariais de 750 mil funcionários e 3,8 milhões de trabalhadores em entidades privadas no ano de 2021. As diferenças são inacreditáveis. Cada trabalhador do sector privado ganha em média, 1.335€ e cada funcionário público recebe 2.019€, ou seja, mais 684€ por mês.

O que o governo quer agora aprovar é que a diferença entre os salários mensais dos trabalhadores e dos funcionários públicos passe de 684 € para mais de 800 €. Não é pouca coisa, especialmente numa altura em que os preços dos alimentos e de outros bens essenciais estão a subir de forma acelerada, as taxas de juro aumentam agravando as mensalidades dos empréstimos, as despesas de saúde tornam-se insuportáveis, o gás e o gasóleo são pagos a peso de ouro e as energias renováveis só são acessíveis a gente rica (ou a funcionários públicos pagos pelos impostos do sector privado).

Justo seria aplicar a mesma regra que o governo está a impor aos militares. O governo anunciou com “pompa” aumentos do investimento em equipamentos na Lei de Programação Militar, mas “esqueceu-se” de dizer que os condicionava à angariação de fundos pelas próprias Forças Armadas. Se os militares não arranjarem dinheiro, não há mais armamento. Porque é que o governo não faz o mesmo com o aumento dos salários dos funcionários e o condiciona à angariação de verbas ou ao corte em outras despesas pelos dirigentes da Administração Pública em vez de forçar os trabalhadores do privado a suportar um custo acrescido?

Esta discriminação entre funcionários públicos e trabalhadores do sector privado é um problema que se arrasta há décadas e que em vez de ser resolvido continua a ser agravado. Ao contrário do que referia esta semana Fernando Alexandre, no Observador, o INE não trouxe de novo para a agenda mediática a clivagem entre os trabalhadores do público e do privado. Dizer isso é essencialmente o mesmo que o Rei da Pérsia terá feito ao mandar matar o mensageiro que lhe trouxe a notícia da derrota perante o exército de Alexandre, o Grande.

Há vários argumentos que são habitualmente usados para explicar a diferença entre os níveis salariais (ler aqui), mas todos eles falham no aspecto essencial: os trabalhadores do sector privado são fortemente prejudicados. A justificação mais usada é que a Administração Pública tem pessoas mais qualificadas. Mas a diferença entre os trabalhadores com ensino superior ainda é maior do que no resto, com os funcionários (salário médio de 2.957€) a ganharem quase mais 700€ do que os trabalhadores do privado (salário médio de 2.263€). Outras razões apontadas como a maior sindicalização, as idades mais avançadas, o menor fosso salarial entre homens e mulheres ou os benefícios extra-salariais não alteram a injustiça da situação.

Os economistas que tentam justificar o injustificável esquecem ainda algo que é muito importante: os trabalhadores com ensino superior e com ensino secundário viram diminuir os seus salários reais nos últimos 15 anos, como mostrou um estudo recente (ler aqui). Os salários dos trabalhadores portugueses com formação superior eram mais elevados em 8,3% em 2006 do que em 2020 e os que tinham formação secundária eram mais altos em 4,3%.

Por estas e outras razões, o que o INE fez, e muito bem, foi expor uma das maiores injustiças que perduram na sociedade portuguesa. E como funcionário público tenho obrigação moral de o realçar e não de o esconder: os funcionários públicos, em média, ganham mais, têm menos obrigações, têm mais férias e trabalham menos horas do que os trabalhadores no privado.

Mais ainda, os funcionários públicos têm isso tudo e têm um emprego garantido para toda a vida, não tendo que passar as agruras de poder estar sem saber onde ir buscar a próxima refeição para alimentar os seus filhos. Só uma grande hipocrisia não permite reconhecer esta situação.

Não me interpretem mal: há funcionários públicos que mereciam ganhar muito mais do que ganham por que trabalham muito e bem, prestando um grande serviço aos portugueses. Mas também há outros que pouco fazem e recebem mais apenas porque estão ligados ao Estado há mais anos e quanto mais tempo lá estiverem mais recebem, mesmo que nada façam.

Para esta justiça que o socialismo defende e promove há uma explicação muito mais simples do que as referidas. O anúncio do aumento dos funcionários já tinha sido feito anteriormente em várias ocasiões (em Março passado apareceu nos jornais) e deverá ser ainda notícia mais uma ou duas vezes até entrar em vigor, o que se prevê seja em 2024.

Curiosamente, ou não, o aumento entrará em vigor numa altura em que se aproximam as eleições do parlamento da UE, que são decisivas para as ambições de António Costa em ter um cargo internacional. Costa quer garantir que pode emigrar para Bruxelas – o que até pode ser uma boa notícia para os portugueses – mas não quer deixar o governo com uma derrota pesada do seu partido.

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