Em honra do “interesse próprio” de Adam Smith

São os negócios (no sentido de ocupação ou negação do ócio) e o “interesse próprio” que criam uma comunidade baseada na cooperação e no benefício mútuo.

Fez recentemente 300 anos que nasceu Adam Smith. O evento foi praticamente ignorado em terras lusas, o que se poderá justificar porque a principal referência feita pelo britânico ao nosso país foi a crítica ao tratado de Methuen assinado em 1703 entre Portugal e a Grã-Bretanha.

Apesar disso, seria louvável e merecido que este acontecimento tivesse sido celebrado dada a importância da herança que deixou. Seria uma forma de os portugueses conhecerem melhor as suas ideias e de perceberem o quão relevantes são nos dias de hoje.

O que habitualmente sobressai da obra de Smith é a “mão invisível” e o “interesse próprio” supostamente ligado aos modelos económicos que maximizam a utilidade dos consumidores ou os lucros das empresas. Por esta via os “sabedores” apresentam o “interesse próprio” como a prova do egoísmo exacerbado pelo dinheiro que caracteriza as economias anglo-saxónicas.

Dando mostras de superficialidade usam uma leitura simplista de um dos autores mais importantes dos últimos séculos para justificar a superioridade do colectivismo ou para realçar a grandeza de valores republicanos que as revoluções continentais nos teriam legado, demonstrando que num país onde a ignorância dá estatuto todos os dislates são admirados.

O “interesse próprio” permite-nos perceber o alcance da obra de Adam Smith e de como está organizada num todo completo e interligado, em que o comportamento das pessoas é considerado nas suas diferentes dimensões práticas e morais.

É para desmistificar essa simplificação que este texto incide sobre a mal compreendida e denegrida ideia de “interesse próprio”, aproveitando um conjunto de artigos publicados pela “Law & Liberty”. O “interesse próprio” permite-nos perceber o alcance da obra de Adam Smith e de como está organizada num todo completo e interligado, em que o comportamento das pessoas é considerado nas suas diferentes dimensões práticas e morais.

A primeira homenagem que se pode fazer à obra de Adam Smith é, por isso, entendê-la como uma tentativa de explicar o comportamento humano. Nesse âmbito, Smith faz uma importante distinção entre o que é “ter um interesse próprio”, que todos os seres humanos têm em maior ou menor medida, e “actuar no seu interesse próprio”.

As críticas a Smith baseiam-se especialmente na citação “It is not from the benevolence of the butcher, the brewer, or the baker that we expect our dinner, but from their regard to their own self-interest”. Nesta frase Smith reconhece o interesse próprio que é característico de todos os seres humanos, mesmo os que têm atitudes altruístas.

Mas Smith afirma explicitamente que o comportamento humano resulta da arte da persuasão, que é necessária para que se chegue a um consenso sobre as regras da comunidade, e que este é um consenso sobre o que é próprio ou impróprio na conduta humana, por um lado, e do que é aprovado ou desaprovado pelos outros com quem se lida durante a vida, por outro.

Ou seja, é a observância destas regras consensuais assentes em sentimentos morais (e na educação e nas artes) dos que actuam e dos que assistem, e a compaixão entre os membros da comunidade (que permite a cada um compreender as emoções dos outros em relação a si próprio) que condiciona e incentiva a contenção e a moderação no comportamento, diferenciando dessa forma o “ter um interesse próprio” do “actuar no seu interesse próprio”.

Realce-se que as regras são definidas por consenso informal, ou seja, descentralizadamente, e que assentam na afectividade da pertença à comunidade e na identificação com o interesse comum, pois não há um poder colectivista ou revolucionário republicano ou socialista a determiná-las e a obrigar todos a segui-las. Sendo a própria comunidade a “desenhá-las”, é também ela que informalmente garante que é observado o comportamento que é apropriado.

São os negócios (no sentido de ocupação ou negação do ócio) e o “interesse próprio” que criam uma comunidade baseada na cooperação e no benefício mútuo e que não só tornam o mercado capitalista num jogo de soma positiva muito superior ao do colectivismo e das utopias revolucionárias.

Neste âmbito, Smith considera perfeitamente virtuoso o homem que actua segundo as regras da perfeita prudência, da estrita justiça e da adequada benevolência. A aversão ao risco pela assimetria entre ganhos e perdas (ou entre alegria e tristeza) explica que a adversidade de passar de uma boa para uma má situação é mais forte do que a alegria de prosperar, o que leva a procura de segurança a ser a principal motivação para a virtude da prudência e, por isso, para a disposição conservadora de manter as vantagens ou a propriedade possuída.

Em contrapartida, Smith considera a beneficência como a virtude mais recompensadora pelo reconhecimento dos membros da comunidade e a justiça a virtude recomendada para não magoar os outros. Enquanto a virtude da prudência visa o interesse e felicidade próprios, as da beneficência e da justiça resultam da compaixão e visam a felicidade dos outros.

O britânico junta sentimentos morais, que servem de base às motivações e aos limites ao comportamento, com a ideia de justiça como defesa da propriedade enquanto pré-condição para o desenvolvimento, para concluir que é a participação voluntária alicerçada no “interesse próprio” e em regras consensuais que faz com que as pessoas – mesmo sem disso se aperceberem – contribuam para a “commonwealth”.

São os negócios (no sentido de ocupação ou negação do ócio) e o “interesse próprio” que criam uma comunidade baseada na cooperação e no benefício mútuo e que não só tornam o mercado capitalista num jogo de soma positiva muito superior ao do colectivismo e das utopias revolucionárias, como “criam” o sentimento de um povo que se identifica com uma nação.

Como Smith expôs quando comparou a riqueza das nações, é esta “mão invisível” que beneficia as comunidades através da descentralização, do “interesse próprio” e de regras de comportamento assentes em valores morais, dinamizando as trocas e o comércio internacional por via da crescente especialização que é originada pela divisão do trabalho e pelos direitos de propriedade bem estabelecidos, expandindo o mercado e aumentando o desenvolvimento.

Alguns economistas associam as diferenças de desenvolvimento entre países às instituições, à destruição criativa “schumpeteriana” ou à acumulação de capital neoclássica, mas na base das três estão sempre as ideias que Smith expôs.

A grandeza e a importância de Adam Smith fica bem demonstrada pelo episódio descrito por Robert Heilbroner em “Os Filósofos deste Mundo”, em que o primeiro-ministro britânico, Pitt, the younger, juntamente com outros destacados políticos da altura, se levanta quando o escocês entra na sala e o cumprimenta dizendo, em resposta ao pedido de Smith para que se sentasse, “ficaremos de pé até que se sente, pois somos todos seus alunos”.

A obra de Smith junta uma disposição conservadora de valores morais como a compaixão e a identificação afectiva de um povo com o interesse comum da nação, à dimensão que é mais habitualmente reconhecida, a liberal clássica ligada à autonomia do indivíduo.

A partir daqui podemos perceber o que é que acontece quando uma minoria tenta impor regras de comportamento diferentes das que são consensualmente aceites e destrói a identificação afectiva com o interesse comum da comunidade, como está a acontecer nos países ocidentais. O resultado de imposições politicamente correctas como a ideologia do “género”, a interseccionalidade falsa e a linguística sem base no conhecimento é a polarização e a radicalização, centralmente decretada por governantes oportunistas.

Os niilistas de hoje recusam regras de comportamento consensuais e enquanto defendem a existência de várias verdades e um liberalismo individualista fanático contradizem-se ao querer impor clichés inclusivos e a suposta verdade das minorias. Como súbdito da “commonwealth” britânica Smith seria contrário a este radicalismo liberal moderno e à sua imposição centralizada.

Ao contrário de Nietzche ou Marx, que foram usados para os piores fins, Smith está associado ao que de melhor as nossas comunidades têm e que vai para além da riqueza material, que ele também promoveu. Os valores morais que estão no centro da sua obra são os que quase desapareceram nas vidas excessivamente individualizadas de hoje, por terem sido “desalojados” por doutrinação ideológica disfarçada de preocupação com os outros. Especialmente por isto vale mesmo muito a pena homenagear Adam Smith.

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