Corrupção democrática
A democracia em Portugal é de uma mediocridade medonha, incorrigível na destruição da independência individual, implacável na dominação do cidadão democrático.
A democracia portuguesa está numa fase crítica. Neste final da temporada 49 sente-se o ambiente corrupto e cansado de um país sem agenda. Sem agenda, o país político roda em círculos concêntricos numa observação suicida e suicidária. É a versão política do “poço da morte” suportado pela velocidade e pela inércia das forças políticas. O país sustenta-se com dinheiros da Europa, impostos portugueses, receitas do turismo. Gasta no que não deve. Guarda no que lhe convém. E no vazio da política instala-se o espectáculo dos bastidores, dos negócios, das comissões, dos interesses, de toda uma sub-classe política nomeada e não eleita mas que goza da protecção dos eleitos. Somos todos responsáveis porque não exigimos responsabilidades.
Os relatórios das comissões de inquérito são atestados de menoridade democrática. As declarações dos ministros são atentados ao espírito democrático. O comportamento do governo parece ser o de uma comissão para a liquidação democrática. Quando a política democrática falha por acção e omissão, solta-se o velho nevoeiro dos pequenos funcionários que movimentam grandes quantias que ninguém conhece ou controla. Este é um clássico da crítica radical às democracias – o último estágio dos interesses privados transformados na ficção do interesse público. Depois toda a classe política democrática se indigna a propósito do crescimento da direita radical, a propósito do “retrocesso civilizacional” e das novas “soluções fascizantes”.
No labirinto legal da democracia, o sistema judicial age ao sabor das oportunidades políticas. A justiça entra no jogo político como um suposto elemento regulador, uma casta de guardiões da República. Novamente surge uma questão clássica nas democracias – quem guarda os guardiões? E a espiral retoma o seu efeito perturbador espalhando o país em todas as direcções sem ter um desígnio comum. Noutras circunstâncias os militares funcionavam como “elemento regulador” dos desmandos políticos. Mas com os militares reduzidos a uma rubrica no orçamento de Estado, sem política, sem poder, sem meios, mas com prestígio, os militares são funcionários públicos com farda dependentes do novo exército de comissários políticos. Normal em democracia. O povo aprecia uma bela parada no dia de Portugal.
Chegados a este ponto da consolidação democrática, o país está transformado num palco de suspeitas políticas. A cada dia as dúvidas sobre o regime acumulam-se. A cada dia os comportamentos corruptos invadem a luz do dia e os títulos dos jornais. O país não existe para além do casuísmo, do laxismo, da hipocrisia, de quem governa em nome da democracia e mais contribui para a degradação da democracia. Aqueles que enchem os discursos com a democracia são os principais inimigos da democracia. Sonham-se indispensáveis, incham com os privilégios dos cargos, falham como membros eficientes de uma governação progressista e democrática. Pensam que são donos da democracia e governam para hoje para poderem desaparecer amanhã no anonimato mais próspero de uma empresa privada longe das limitações de um cargo público. Políticos “mulheres-a-dias” hoje, conselheiros “mulheres-da-noite” amanhã.
A democracia em Portugal parece uma cobra que se enrola e começa a devorar o seu próprio corpo. Pela devastação da corrupção. Pela paralisia da governação. Pela impotência da oposição. Se no governo estão os “democratas radicais”, na oposição estão os “radicais democratas”. E em vez de política temos o colóquio impossível entre duas religiões evangélicas onde sobram a pureza democrática e o espírito de um país renovado. Entre estas duas religiões cívicas eleva-se uma minoria de oportunistas que sabe como tirar partido de um regime que não sabe usar uma maioria para governar com inteligência. A sub-classe oportunista tanto é “democrata radical” como “radical democrata”, oscilando ao sabor dos negócios que expropriam o país e garantem as rendas vitalícias de uma democracia que esquece a justiça e ofende a liberdade.
Não há aqui exagero. A doença é antiga como o país. A democracia portuguesa existe no mundo mediático, num palácio republicano em São Bento, numa residência monárquica em Belém, num Parlamento decorado com estátuas de gesso. E com tribunais na rua em operações “reality show” para assustar a democracia com visões do apocalipse em defesa da democracia.
A democracia na temporada 49 é uma carta de jogar com um naipe antigo mas moderno, a última carta de um baralho desfeito. A democracia não tem um sentido, não sabe o seu valor, não tem como se comparar para se valorizar, não sabe para que serve para se encontrar. A democracia está transformada numa sequência de imagens sem nexo – a manipulação do significado político está na futilidade das aparências, do cenário, do ritual.
A democracia em Portugal é de uma mediocridade medonha, incorrigível na destruição da independência individual, implacável na dominação do cidadão democrático. A ideia de consenso é uma operação política em que a esquerda imita a direita e a direita imita a esquerda. Um jogo de soma nula que sustenta todas as corrupções anónimas. A luta do cidadão democrático contra o poder é sempre a luta da memória contra o esquecimento.
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