País Pós-Papa
Devolvidos ao nosso destino enquanto nação, podemos regressar ao desprazer de nos condenarmos politicamente pelo impasse e pela estagnação.
Depois dos lucros da banca segue-se a visita do Papa. Existe uma estranha ironia entre a evidência material e a incidência espiritual – números que acumulam lucros que nunca chegam ao reino do céu. A economia dos lucros é a prática reiterada de uma lógica que se reivindica da providência do progresso, pois o progresso custa dinheiro e o dinheiro não cai do céu. Não vi nem ouvi banqueiros na Lisboa das Jornadas. Estranho, pois até o PCP elogia as Jornadas pela voz política da Juventude Comunista. O vermelho da revolução revê-se na exuberância do dourado dos altares – a religião secular vacila perante a religião espiritual e também sonha com multidões.
A política tem destas coisas. O governo, a câmara, a presidência, tudo circula em torno da presença do Papa numa estranha corrida que não é religiosa porque sempre e somente política. O presidente destaca-se pela fé profunda e o entusiasmo genuíno. O governo e a câmara fazem marcação cerrada para limitar os dividendos políticos de cada uma das partes. O sentimento legítimo dos portugueses não pode ser confundido com os interesses futuros da política no Portugal democrático. Ninguém pretende instrumentalizar a presença do Papa, entre a veneração à direita e a crítica silenciosa à esquerda. A tolerância é apenas uma trégua temporária até que a odisseia do custo das Jornadas entre no frenesim da política diária e nos títulos dos jornais. Após a visita papal ainda sobra a pose de um certo “exibicionismo moral” em tempo de férias políticas. As divisões políticas são para outro tempo. E esse tempo chegará mais cedo com as eleições europeias ou com as eleições autárquicas com o foco em Lisboa.
O Papa é um símbolo da bondade. Li algures que os políticos entendem a “bondade como um defeito político”. Uma “qualidade humana”, mas um “defeito político”. Na existência civil, a bondade é uma variante da decência na relação que se estabelece entre indivíduos numa sociedade moderna e comercial. No reino da política, a bondade é um “desastre” porque se esgota no momento em que é praticada.
Se a política é a luta pela dominação, é a antecipação da acção política para diminuir as perspectivas de sucesso do adversário, a bondade é uma contradição insanável porque é ingénua e supérflua. Em política, a prática só pode ser a de não dar a outra face, mas sim ser dono de todas as faces necessárias, úteis e urgentes para ganhar o poder e para manter o poder. Neste ponto o governo é exímio. No mesmo ponto onde a oposição é exímia. Fica então no coração da política uma “moral calculista” que é a prática de uma outra moral – a moral onde se ganha sempre, mesmo quando se perde quase sempre. Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para vencer. A visita do Papa é o choque entre dois mundos.
A moral específica da política é o que torna a figura do político numa espécie quase divina. Ao político exige-se visão, inteligência, autoridade e capacidade de acção para além do normal e do convencional. Desta lógica nascem os “cultos da personalidade”, nasce a figura do “homem providencial”, o “salvador da pátria” que todos temem, respeitam e veneram.
A infalibilidade do primeiro-ministro enquadra-se neste ramo da política, tal como a ideia do “maior político da sua geração”, o “iluminado” de uma religião secular marcada pela razão e pela energia. O que falta à primeira vista é a preocupação com o “bem comum”. O bem comum resume-se aos interesses particulares do partido no apogeu do poder. O contraste entre o “bispo vestido de branco” e o “executivo de fato e gravata” não podia ser maior, embora a tentação de absorver o estatuto da superioridade não política do “bispo vestido de branco” esteja presente em cada gesto político do “executivo de fato e gravata”. Fica o brilho do reflexo de um Estado laico bem guardado dos olhares públicos e bem visível aos olhares públicos.
O Papa vem a Lisboa apontar uma direcção ao mundo e aos homens. Vem a um país onde a política é a prática do efémero e o exercício do expediente. O país que se caracteriza pela permanente ausência de visão, que se comporta como se sofresse de uma interna “carência afectiva” compensada com a ilusão recorrente de que é o “centro do mundo”. Sobram os portugueses, porque sobram sempre os portugueses, submetidos a uma “política da facilidade” que transforma um governo de esquerda e socialista na variante prática típica de uma “política social cristã”. Mas não é a bondade a prova última de um desastre político?
A visita do Papa é a suspensão da normalidade. Portugal adora as suspensões da normalidade. É como se vivesse num “espaço liminar”, num espaço fora do tempo político e fora da realidade social. Nestes momentos de sobressalto cívico, existe a ilusão de que o país ganha o direito ao futuro. Mais ainda, ressalta a evidência de que o destino nacional foi alcançado no seu esplendor mais supremo e que a “ilha dos amores” é a República democrática enfim concretizada.
Devolvidos ao nosso destino enquanto nação, podemos regressar ao desprazer de nos condenarmos politicamente pelo impasse e pela estagnação. A política devolvida a uma espécie de “estética do desalento”. Enquanto o Papa descansa em Roma, a Cidade Eterna.
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