IVA Zero: remédio ou placebo?
O desafogo na captação de receita fiscal e a necessidade de, agora ou mais tarde, reverter esta isenção de imposto, deveria ser aproveitada para uma profunda reformulação do Código do IVA.
Desde finais de março, quando foi avançada a possibilidade de ser aprovada a isenção de IVA num conjunto de produtos alimentares, vulgarizou-se a ideia de que a medida teria um efeito muito escasso. Ao mesmo tempo, ainda assim, multiplicaram-se os ‘observatórios’ para verificar a implementação da medida e confirmar que não seria utilizada para um aumento especulativo de preços que absorvesse a redução fiscal.
Vale a pena, julgo, recordar alguns factos: uma redução da taxa de inflação não significa uma redução de preços, mas apenas um crescimento menos rápido desses mesmos preços; a variação da taxa homóloga teria sempre alguma tendência de amortecimento a partir do momento em que o comparativo se fizesse com os meses em que o impacto do conflito no leste europeu se sentiu mais fortemente (ou seja, em especial a partir de abril) e; uma redução de IVA de 6% no preço de um produto não gerará, por si só, uma redução de preço superior a 6%.
É igualmente importante realçar que a lista de 46 tipologias de produtos incluídas na lista do IVA Zero se desmultiplica em milhares de produtos individuais, mas que correspondem a não mais de 20 a 25% do total de compras alimentares de uma família portuguesa. Mais, de acordo com os cálculos utilizados pelo INE para a construção do Índice de preços ao consumidor, a alimentação vale menos de 22% do total das despesas consideradas. Ou seja, a redução de 6% incide sobre uma parcela que representa 5 ou 6% da despesa média de um lar em Portugal.
Quando as dores provocadas pela inflação afetam o ‘corpo’ de todas as famílias nacionais, o IVA Zero pode não ter um poder curativo, mas tem pelo menos um efeito analgésico. Efeito que se propaga também, via contenção de novos aumentos, aos restantes produtos alimentares e a muitos outros vendidos nas prateleiras dos supermercados.
Haveria, seguramente, medidas que seriam mais estruturais – por exemplo, a alteração de escalões e taxas de IRS ou uma diminuição do IVA mais abrangente -, mas o IVA Zero era mais imediato, direto e comunicável, por isso mais em linha com a conduta governativa. Mais, comparando com Espanha, onde a medida foi adotada no meio da espiral inflacionista, o governo de António Costa colocou a medida em vigor três meses e meio mais tarde. Assim conseguiu capitalizar rapidamente os seus efeitos positivos, beneficiando da desaceleração da inflação e do mais benéfico comparativo com os meses homólogos de 2022.
Para além disso, ao obrigar a comunicação da medida no ponto de venda, gerou mais um foco de atenção em lojas já inundadas de diferentes mecânicas promocionais, com consumidores sempre atentos às melhores oportunidades de compra.
Mas deve a medida ser prolongada para além de 31 de outubro? A resposta é um sim inequívoco.
Desde logo porque a inflação, apesar de mais contida, está longe de estar controlada. E se há notícias positivas do lado da energia, dos combustíveis ou de alguns materiais de embalagem, o conflito na Ucrânia não parece estar em vias de resolução, as disrupções logísticas ainda se sentem, há nuvens negras no horizonte com nova crise com os cereais do Mar Negro e estamos a ter, para muitas matérias primas, um péssimo ano agrícola. As tensões inflacionistas permanecem fortes.
Depois, porque a reversão da medida reintroduziria mais de um ponto percentual na taxa de inflação. E muitos dos que hoje a criticam se queixarão da cessação dos seus efeitos quando acontecer.
Apesar de limitada, esta é uma medida que permite alguma recuperação de poder de compra num país em que prevalecem os salários baixos. Os orçamentos disponíveis foram fortemente atacados pelo diferencial entre uma inflação exuberante e uma reposição salarial bastante envergonhada.
Um argumento de sentido oposto seria o relativo à perda de receita fiscal (projetada em 410 milhões de euros) que o IVA Zero provoca. Mas esse valor é apenas uma parcela do que, empurrado pela inflação, o Estado arrecadou em sede de IVA: mais 3.450 milhões de euros em 2022 e, até abril deste ano, mais 800 milhões.
Ainda assim, vale sempre a pena chamar a atenção que esta medida, ao beneficiar um determinado conjunto de produtos, convida e induz o correspondente consumo. E num país onde as carteiras, mais ainda nesta altura, estão pouco recheadas, comprar uns produtos significa abandonar o consumo de outros. É a liberdade de escolha do consumidor que fica penalizada, mas são também as cadeias de produção, as empresas produtoras e os seus trabalhadores que são prejudicados por uma medida político-administrativa que não deixa de gerar danos colaterais.
Finalmente, a atual conjuntura, o desafogo na captação de receita fiscal e a necessidade de, agora ou mais tarde, reverter esta isenção de imposto, deveria ser aproveitada para uma profunda reformulação do Código do IVA nestes e noutros produtos
A recente proposta da CIP, de harmonização de todos os produtos alimentares na taxa reduzida de 6%, faz todo o sentido. Facilitaria profundamente a vida a todos os operadores do setor, retiraria a incerteza na aplicação da taxa a cada novo produto que é colocado no mercado, não geraria competição desleal entre produtos e, mesmo sem considerar potenciais efeitos positivos para a captação de receita (por exemplo, com a venda adicional de produtos), motivaria uma quebra de receita fiscal de não mais de 110 milhões de euros.
Permitiria, para além disso, uma maior competitividade fiscal face a Espanha, limitando a compra e o abastecimento transfronteiriço que penalizam as empresas portuguesas e, consequentemente, penalizam a arrecadação de receita fiscal em Portugal.
Finalmente, possibilitaria acabar com a verdadeira aberração que é a de taxar sempre a 23% qualquer produto que seja verdadeiramente inovador, pois a inexistência de especificação nas listas anexas ao Código do IVA implica esse sobrecusto – um verdadeiro imposto à inovação – na sua entrada no mercado. A inovação é um processo moroso, caro e com uma elevada dose de risco. É contraproducente que seja fiscalmente discriminado.
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