O país que precisa de engenheiros mas continua a formar jornalistas
O alheamento do ensino em relação às necessidades do mercado provoca esta disfunção: enquanto se formam jovens para o desemprego, não se abrem vagas para qualificações necessárias e que têm futuro.
Esta quinta-feira participei numa conferência do Fórum para a Competitividade e da Ordem dos Engenheiros sobre a revolução que está a acontecer na mobilidade – “car sharing” e sistemas semelhantes, uberização, carros eléctricos e de condução autónoma, “smart cities” e por aí fora.
Espantou-me positivamente o que muitas empresas e entidades estão a fazer nesta área com a certeza de que vão mudar a forma como nos relacionamos com o automóvel e o transporte — a vida por baixo da camada das notícias é, por regra, mais interessante e mais positiva. Mas também me indignou outro facto: muitas empresas precisam e querem contratar engenheiros de várias especialidades e, simplesmente, não os há em Portugal. Foi isto que ouvimos da Bosch, logo depois confirmado pela Efacec e pela Frezite. A Brisa, não tendo tanta necessidade desses profissionais, não lhes sente tanto a falta.
Estamos a falar de empresas de ponta nas suas áreas, altamente internacionalizadas e competitivas. Quando se lhes pergunta sobre os maiores obstáculos que têm para fazerem mais e melhor, apontam a falta de trabalhadores qualificados à cabeça. Não é a burocracia, nem a transferência de conhecimento das universidades, nem a conjuntura. Precisam é de engenheiros – ou técnicos – com a formação adequada.
Neste caso ouvimos isto dos responsáveis das empresas referidas, mas esta é uma queixa frequente na última década e meia. Já a ouvi ou li atribuída também à Siemens, a empresas da área dos moldes, do têxtil ou do calçado e até na administração pública. E é um alerta constante da própria Ordem dos Engenheiros. E temos, portanto, este estado de coisas a prolongar-se no tempo.
De um lado, um país com uma elevada taxa de desemprego jovem, muitas vezes de recém-licenciados que não conseguem entrar no mercado de trabalho. Apesar da descida dos últimos anos, os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística dizem que no primeiro trimestre deste ano havia 80 mil desempregados com idades entre os 20 e os 24 anos. Se alargarmos até aos 34 anos de idade são cerca de 245 mil.
Do outro lado, dezenas, centenas de empresas carentes de mão-de-obra especializada para trabalhar em alguns dos projectos mais dinâmicos dos tempos que correm e onde o emprego só pode aumentar nas próximas décadas, porque é ali que se desenvolvem e produzem muitas das coisas que vamos utilizar no dia-a-dia, mas que ainda nem sabemos que vamos utilizar.
Neste dramático desencontro entre oferta e procura, o que há pelo meio? O sistema de ensino e as universidades. É aqui que se decide quantos profissionais vamos ter no mercado de trabalho daqui a uns anos em cada área, através das famosas vagas e “numerus clausus”.
É aqui que se decide – por exemplo, e para falar de uma área que conheço bem – que por ano continuem a chegar ao mercado centenas de licenciados em comunicação social e jornalismo que vão tentar encontrar um emprego num sector que está a despedir às centenas nos últimos anos, não sendo realista que nos futuro próximo possam voltar a contratar. Quem conhece a evolução dos media sabe que hoje fazem mais falta jornalistas com capacidades de edição de vídeo, motion graphics ou de programação do que apenas com capacidade de trabalhar com um editor de texto. Mas muitas universidades continuam a insistir numa formação nesta área que vai pouco além da “cultura geral”.
Este alheamento do ensino em relação às necessidades do mercado e das empresas provoca esta disfunção: enquanto de um lado de se formam jovens para o desemprego, do outro não se abrem mais vagas para qualificações que são mesmo necessárias e que têm futuro. A partir daqui crescem depois fenómenos como o sub-emprego, a precaridade e o total desencontro entre a área de formação e a profissão que teve que se aceitar.
Ficamos muito incomodados com o licenciado em comunicação, sociologia ou história que não teve alternativa senão trabalhar como caixa de supermercado ou entregador de pizzas – tarefas necessárias e igualmente nobres, mas para as quais não são necessárias aquelas formações.
Mas não nos chocamos com o sistema que produz estas aberrações e que as perpétua.
Há, concerteza, excepções. Há estabelecimentos de ensino superior que tentam adaptar os seus cursos e planos curriculares às necessidades do tecido empresarial da região onde se inserem: turismo no Algarve, design e engenharias várias no Minho, só para citar dois exemplos.
Mas não chega e para perceber isso basta falar com alguns empresários e gestores. Talvez não fosse difícil sentarem-se todos a uma mesa, projectar o que o mercado precisa para a próxima década e desenhar a oferta de ensino mais adequada, a começar pelo ensino profissional de que as empresas também necessitam.
Mas para isso seria necessário que uma parte das entidades de ensino olhasse de forma diferente para a sua missão e estivesse disposta a adaptar-se ao que a comunidade precisa e não esperar que a comunidade se adapte eternamente à sua estrutura e oferta tradicionais, muitas vezes ultrapassadas por essa coisa aborrecida que se chama realidade, mudança e desenvolvimento.
Quando isto falha há uma grande destruição de valor na sociedade e milhares de vidas adiadas.
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