Juíza manda apagar “crime” nas denúncias de consumidores sobre preços do Pingo Doce
Providência cautelar só condena Citizens’ Voice a retirar da Internet publicações em que imputa ao Pingo Doce “crimes pelos quais não tenha sido condenado”. Retalhista avisa que “outras se seguirão".
A Citizens’ Voice e o presidente desta associação de defesa dos consumidores, Octávio Viana, foram proibidos pelo Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia de manter as publicações na página oficial na Internet e nas redes sociais nas quais imputam ao Pingo Doce a “prática de quaisquer crimes, designadamente de especulação de preços e de publicidade enganosa, pelos quais não tenha sido condenada”.
No entanto, a decisão relativa à providência cautelar que tinha sido interposta pela retalhista, a que o ECO teve acesso, não os impede – como pedia a empresa da Jerónimo Martins – de divulgar publicamente as ações populares com que tem avançado e que se encontrem pendentes de decisão, assim como aquelas que estejam em preparação. Nem os condena a retirar as referências que têm feito à disparidade entre os preços anunciados nas prateleiras e os efetivamente cobrados nas caixas em perto de uma centena de produtos, sobretudo alimentares.
Octávio Viana e esta associação, criada em 2021, que funciona como “satélite” de uma associação de defesa dos investidores (ATM), foram condenados a pagar mil euros “por cada dia de atraso no cumprimento” desta determinação, “a título de sanção pecuniária compulsória”. Cinco vezes abaixo do valor que tinha sido requerido pelo Pingo Doce. Entretanto, a Citizens’ Voice já retirou da lista de ações publicitadas no site e nas redes sociais todas as menções à palavra “crime”.
Através de fonte oficial, o Pingo Doce mostra “satisfação” pelo facto de a associação e do seu presidente terem sido “intimados judicialmente para cessarem de imediato a imputação nos seus sites e nas redes sociais da prática por Pingo Doce dos crimes de especulação e de publicidade enganosa”. Mas garante ao ECO que não fica por aqui: “Trata-se de uma primeira medida contra a Citizens’ Voice [e] outras se seguirão, tendo em vista impedir a instrumentalização da justiça, através da ação popular, para satisfação de interesses económicos egoísticos e absolutamente obscuros”.
Trata-se de uma primeira medida contra a Citizens’ Voice [e] outras se seguirão, tendo em vista impedir a instrumentalização da justiça, através da ação popular, para satisfação de interesses económicos egoísticos e absolutamente obscuros.
Já a associação sediada em Vila Nova de Gaia, congratula-se pelo facto de, “na prática”, a juíza apenas ter imposto que dessas publicações fosse retirada a palavra “crime”. “A Citizens’ Voice, quando se referiu a ‘crimes de especulação’ foi sempre no contexto de informação das ações populares, indicando quem eram os titulares dos interesses em causa e qual a causa de pedir e pedido nessas ações, resumindo o máximo possível”, argumenta num comunicado em que felicita o tribunal por ter rejeitado a imposição de uma “Lei da Rolha”.
Ainda assim, a associação que já entregou 61 ações coletivas e diz ter outras 22 em preparação contra o Pingo Doce – com base no diferencial que alega ter encontrado em dezenas de lojas, o pedido global de indemnização supera os 200 milhões de euros – decidiu recorrer por sustentar que a sua referência a crimes de especulação “não constituía uma acusação de prática criminosa ao Pingo Doce, nem visou ofender a honra ou o bom nome desta cadeia de supermercados”. E igualmente para reclamar da ausência de condenação da empresa retalhista como litigante de má-fé.
“Tendo a requerente deduzido pretensões que não tiveram total acolhimento, não resulta dos autos que tenha agido com propósito evidente de obter decisão cujos fundamentos bem sabia não existir, nem ficou demonstrada alteração dolosa da verdade de factos relevantes para a decisão da causa, nem pode concluir-se que o seu comportamento é censurável.
De facto, limita-se a pedir proteção de direito que lhe é constitucionalmente consagrado. Pelo exposto, não se considera que tivesse tido, para com o tribunal ou a parte contrária, uma conduta suscetível de integrar o conceito de litigância de má-fé”, sentencia a juíza Ana Cristina Guedes da Costa, no documento consultado pelo ECO.
Liberdade de expressão e “exercício de interesse legítimo”
Quando deu entrada a providência cautelar, Octávio Viana queixou-se ao ECO de uma “tentativa de silenciamento” e referiu mesmo que “se algum dia uma providência deste género fosse concedida, seria o fim da democracia e da liberdade de expressão – cujo recurso teria de ser o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”. Conhecida a decisão, a associação destaca que o tribunal “reconheceu a importância fundamental da liberdade de expressão e informação como pilar de uma sociedade democrática e condição essencial para o seu progresso e desenvolvimento”.
Na decisão agora conhecida, assinada a 7 de novembro, a juíza escreve que “não basta que os factos publicitados sejam suscetíveis de afetar o prestígio ou bom nome para que se verifique comportamento ilícito e violador do direito à honra”. E salienta que “grande parte das publicações efetuadas pelos requeridos enquadram o exercício da liberdade de expressão dentro dos limites que se devem ter por admissíveis numa sociedade democrática aberta e plural, apenas se excedendo na parte em que imputam a prática de crimes de especulação de preços e de alegado crime de publicidade enganosa”.
“No exercício do seu direito de liberdade de expressão, podem informar os consumidores (que têm interesse na informação) sobre as divergências de preços encontradas (…) e sobre a existência de ações populares e os seus fundamentos, bem como da existência de participações criminais que faça (deixando claro que é uma participação e não já uma condenação pela prática de qualquer crime).
De facto, tal configura, além de liberdade de expressão, o exercício de interesse legítimo de uma associação de defesa de consumidores informar os consumidores em geral de factos relevantes para os mesmos, como a errada marcação de preços, mesmo que ocorra por lapso ou erro humano de funcionários” do Pingo Doce, conclui a juíza.
“Condenou” a Vodafone e levou gasolineiras à justiça
A ação popular mais emblemática da Citizens’ Voice envolveu a Vodafone Portugal, com um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, com data de 2 de fevereiro de 2022, a obrigar a operadora de telecomunicações a restituir aos clientes os pagamentos que lhes tenham sido cobrados na sequência da ativação automática de serviços adicionais não solicitados. A revista Sábado noticiou que uma cliente de Coimbra foi a primeira – e a única, até ao final de julho – a executar a empresa no âmbito deste processo e a ser restituída dos valores exigidos em tribunal: recebeu 3.328,94 euros.
Já este ano, e depois de a ASAE – Autoridade de Segurança Alimentar e Económica ter decidido instaurar processos-crime contra gasolineiras por cobrarem impostos a mais, sete comercializadores de várias zonas do país foram levados a tribunal por alegados crimes de especulação.
Os processos – a decorrer em tribunais cíveis – incluem bombas com insígnias da Prio, Intermarché, Galp, Alves Bandeira e BP, e envolvem situações em que os contadores não começaram no zero, em que o valor do ISP foi adulterado e ainda publicidade enganosa.
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