O preço das casas e a política monetária
As falhas da política monetária e a falha do governo em preparar o país para a falta de habitação explicam porque é que os portugueses estão agora a passar dificuldades
Há uma grande dificuldade do Banco Central Europeu (BCE), e dos bancos centrais nacionais que o compõem, em reconhecerem os erros que cometeram na última década em termos de política monetária.
Os erros não são directamente observáveis, mas podem ser inferidos pela evolução da actividade económica e das variáveis de finanças públicas. E explicam-se pela ilusão criada no início deste século de que o crescimento da massa monetária tinha pouca a ver com a inflação, contrariando algumas décadas em que essa relação foi considerada válida e a teoria quantitativa da moeda aceite, mesmo que não completamente compreendida.
A afirmação de Milton Friedman de que a inflação é essencialmente um fenómeno monetário ainda ecoava na cabeça dos decisores de política monetária no final dos anos 1990, quando o BCE foi criado à imagem do Bundesbank.
A partir de 2003 e até 2021, no entanto, essa relação rompeu-se e o aparente baixo crescimento dos preços levou a que se desse mais importância às variáveis económicas como o mercado de trabalho e o crescimento dos salários, tendo as questões monetárias associadas à tendência da inflação sido desvalorizadas.
A seguir ao “whatever it takes” de Mario Drahgi, em 2012, que visou evitar o colapso da zona Euro, o BCE assumiu uma postura activa de interferência nos mercados monetários e financeiros e a crescimento anual de 9% da massa monetária. Essa postura levou, especialmente a partir de 2015, à falsa crença de que a política monetária poderia ser usada como um instrumento sem limites, pois a massa monetária não parava de crescer e as taxas oficias de inflação não davam sinais de aumentar.
Desta forma o BCE financiou as dívidas dos Estados, em total desrespeito pelos tratados da UE, tendo, por essa via, contribuído para a estabilização do sistema financeiro pois permitiu ganhos rápidos nos títulos de divida pública a bancos que estavam em má situação financeira (este efeito, contudo, não se reflectiu num aumento do investimento e do emprego que acelerasse significativamente o crescimento económico).
O problema foi que o crescimento da massa monetária se tornou um doping viciante de políticas populares e aparentemente sem custo. Em vez de reformas económicas que são difíceis de implementar, mas têm efeitos benéficos permanentes e de longo prazo, muitos governos escolheram a via fácil de gerir a conjuntura beneficiando de margem de manobra proporcionada pela política monetária para distribuir benesses pelos seus eleitorados. Portugal, claro está, foi um dos mais activos nesta escolha.
As consequências da ausência de reformas, da diminuição do investimento líquido do Estado, do crescimento dos salários acima da produtividade no Estado e no privado, e do continuado crescimento da despesa não produtiva e da dívida pública (aumentaram, respectivamente, 30 mil e 50 mil M€ desde 2015) estão hoje a sentir-se e a fazer sofrer os portugueses.
Um dos aspectos que mais está a afectar o nível de vida em Portugal é o preço das casas. O gráfico mostra a evolução da massa monetária do Euro e dos preços das casas no nosso país e pode observar-se que o crescimento anual (as colunas) não foi a par, tendo a massa monetária oscilado no seu crescimento positivo (refere-se a toda a zona Euro onde Portugal tem um peso pequeno) enquanto o crescimento do preço das casas acelerou continuadamente desde 2015.
Ou seja, apesar dos indicadores oficiais de inflação não terem crescido, o preço das casas (e dos activos financeiros) aumentou muito neste período, havendo uma enorme correlação no crescimento acumulado das duas variáveis (as linhas). Daqui não se pode concluir que houve uma relação directa de causa-efeito entre a política monetária e os preços das casas, até porque os canais directos de transmissão do crescimento da massa monetária para o mercado de habitação não funcionaram (o stock de crédito à habitação em Portugal não cresceu, continuando a diminuir após 2015).
Mas ao contrário do que possa ser uma leitura limitada ao gráfico (em que a massa monetária é a liquidez imediata M1, moeda e depósitos), a política monetária tornou-se mesmo muito expansionista a partir de 2015, quando os activos no balanço do BCE aumentaram de 2,5 para 4,7 mil M€ em 2019. Isto ocorreu numa altura desadequada porque as economias europeias já tinham recuperado da crise e estavam a crescer, mesmo que a um ritmo baixo, mas foi a opção tomada porque os indicadores de inflação não reflectiam esse expansionismo e havia a vontade política de aumentar salários para que recuperassem das perdas verificadas com a crise.
O que o gráfico parece realmente indicar é que há uma relação indirecta entre a política monetária na área do Euro e os preços das casas em Portugal e nos outros países, onde também cresceram muito ao longo do mesmo período.
Em Portugal essa relação pode ter sido transmitida através de dois canais diferentes:
1 – Do lado da procura pelo aumento da população residente em 200 mil pessoas que foi incentivada pela ausência de uma política de imigração que eliminou quase completamente os requisitos para obtenção de residência. Muitos dos novos residentes, e especialmente os que possuem maior poder de compra, habitam na região de Lisboa e são oriundos de países da Zona Euro onde tiveram acesso a crédito a uma taxa de juro muito baixa permitida pela política monetária expansionista e que o usaram para a aquisição de casas cada vez mais caras. Por esse motivo, o stock de crédito em Portugal não explica toda a procura por habitação no nosso país.
Outros factores explicativos de pressão na procura incluem a continuação da deslocação de população para as cidades do litoral e o investimento imobiliário de outras nacionalidades, mas ao contrário do que é habitualmente insinuado os valores envolvidos em programas como os vistos Gold têm um significado limitado no número e mesmo no valor das transacções de imóveis para habitação. De acordo com o INE, entre 2015 e 2021 venderam-se 950 mil casas em Portugal e o número de residentes não habituais terá sido inferior a 30 mil, segundo a Fundação Francisco Manuel dos Santos. E das 157 mil transacções de casas ocorridas em 2021, apenas 5% foram realizadas por estrangeiros.
2 – Do lado da oferta, pelo facilitismo e ausência de reformas que a política monetária expansionista facilitou e que explica que municípios como o de Lisboa não tenham investido em habitação ao longo da década de 2010. Realce-se que em Portugal houve apenas um aumento de 110 mil habitações em 11 anos, entre 2011 e 2021, sendo que muitas se destinaram a segunda habitação.
Outras razões incluem a grave crise do sector da construção provocada pela bancarrota, o aumento de restrições burocráticas e de taxas aplicadas à construção e a incoerência e a incompetência governativas. O governo socialista anunciou em 2015 um investimento público de 1.400 M€ para a construção de 7.500 casas com rendas acessíveis destinadas a 30 mil famílias, mas nunca o concretizou apesar de ter decidido abrir as portas à imigração com poucos recursos. Por isso hoje há casas em Lisboa onde dormem 15 pessoas no mesmo quarto. Esta incompetência repete a que já havia acontecido na Câmara de Lisboa, quando os socialistas apenas construíram 17 casas por ano para fins sociais.
O mercado da habitação é apenas um exemplo do que foi permitido pelo erro da política monetária laxista seguida após 2015. Pode-se até afirmar que mesmo que se resolvessem os problemas específicos do mercado nacional, especialmente do lado da oferta, teria havido sempre uma substancial perda de poder de compra de casa pelos portugueses, pois a intervenção do BCE parece ter sido determinante para a subida acentuada dos preços no mercado imobiliário.
Há um outro exemplo mais recente, e ainda mais preocupante para as famílias, dos erros da política monetária: o elevado nível de inflação e de taxas de juro, que está a lançar as economias da zona Euro numa recessão.
As falhas da política monetária e a falha do governo em preparar o país para a falta de habitação e para o crescimento dos preços quando beneficiou de taxas de juro baixas, da conjuntura económica internacional favorável e das reformas realizadas até 2015 explicam porque é que os portugueses estão agora a passar dificuldades que uma política responsável e políticos competentes poderiam ter prevenido.
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