“Ser funcionário da ONU já não é garantia de segurança”, assume Jorge Moreira da Silva

  • Lusa
  • 15 Novembro 2023

Jorge Moreira da Silva afirma que guerra em Gaza tem colocado a ONU "numa posição diferente do habitual quanto à segurança" e considera injustos os ataques de Israel contra Guterres.

O subsecretário-geral da ONU Jorge Moreira da Silva disse à Lusa que a guerra em Gaza colocou as Nações Unidas numa posição “nunca vista”, em que ser funcionário ou estar sob sua proteção já não é “garantia de segurança”.

A guerra em Gaza “tem-nos colocado numa posição diferente do habitual quanto à segurança, isso sim é novo”, porque, “habitualmente, considerava-se que ser funcionário das Nações Unidas era uma garantia de segurança”, disse Moreira da Silva, em entrevista à Lusa, em Nova Iorque.

No entanto, já morreram mais de 100 funcionários das Nações Unidas em Gaza nos bombardeamentos de Israel em resposta aos ataques de 7 de outubro perpetrados pelo Hamas. “Nunca tantos funcionários das Nações Unidas morreram. Hoje, estar em infraestruturas das Nações Unidas não significa ter qualquer tipo de proteção adicional“, disse.

“Normalmente, infraestruturas das Nações Unidas não eram atacadas, as pessoas que estavam em infraestruturas das Nações Unidas não eram atacadas. Ora, hoje, quer os funcionários da ONU, quer as pessoas que estão alojadas em infraestruturas da ONU, estão sobre exatamente os mesmos riscos que o resto da população em Gaza e portanto, isso sim é algo novo que nunca tínhamos visto”, observou.

Questionado sobre se isso obrigará a ONU a mudar a sua abordagem, o diretor executivo do Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS) disse acreditar que não, mas assegurou que os funcionários terão agora de ter “cuidados acrescidos”.

“Vai obrigar-nos a continuar a trabalhar com cuidados acrescidos, na medida em que estamos a defender as populações e, ao mesmo tempo, quem está em Gaza como funcionário humanitário das Nações Unidas tem que se proteger a si próprio”, disse.

Jorge Moreira da Silva assumiu ter “um enorme orgulho” nos cerca de 70 funcionários da UNOPS que estão em Gaza e que querem continuar no enclave, salientando que, apesar das circunstâncias tão difíceis a que estão sujeitos, “aquilo que mais querem é poder ajudar a população”.

Todos os escritórios da ONU ao redor do mundo fizeram na manhã de segunda-feira um minuto de silêncio pelos mais de cem funcionários da agência da ONU para os refugiados palestinianos (UNRWA) que perderam a vida em Gaza. Na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, a bandeira da ONU foi colocada a meia haste como parte da homenagem a esses funcionários que morreram no enclave.

Ainda num olhar para outros conflitos ao redor do mundo, e para a falta de financiamento que os apelos da ONU enfrentam, Moreira da Silva salientou que “as outras crises não desapareceram”, como no Sudão, Níger, Myanmar, Iémen, Mali, Haiti, Somália, no Afeganistão ou em Moçambique.

É fundamental que a comunidade internacional se continue a mobilizar para ajuda adicional e não para a substituição de ajuda. Nós não podemos parar de apoiar e de ajudar a mitigação de outras crises só porque existem novas crises, o que significa que nós precisamos de mais solidariedade e mais cooperação internacional”, reforçou.

A lacuna para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nos países em desenvolvimento aumentou 56% após a pandemia de Covid-19, totalizando 3,9 biliões de dólares (3,65 biliões de euros) em 2020, segundo a ONU. Depois da pandemia, surgiram ainda novos fenómenos de crise, como os conflitos na Ucrânia e em Gaza, conforme observou o diretor da UNOPS.

Este é um momento em que a comunidade internacional tem de se mobilizar para mais solidariedade e maior cooperação. É importante que tenhamos noção que estamos a viver um momento de ‘policrises’. (…) Além destas crises muito associadas a conflitos ou a fenómenos que não estávamos à espera, como uma pandemia, ainda temos três crises que estão connosco há muito tempo: a climática, a da biodiversidade e a da pobreza”, sublinhou.

Contudo, apesar de todo o cenário, os países em desenvolvimento “são sempre desproporcionalmente afetados”: “As crises podem ser globais, mas há sempre quem sofra mais e quem sofre mais são sempre os mais pobres. São os mais pobres dentro de cada país e são os mais pobres a nível global”, disse Moreira da Silva.

Nesse sentido, o subsecretário-geral da ONU considera fundamental um maior apoio aos países em desenvolvimento, “não só por razões éticas e morais”, mas “também porque é do próprio interesse dos países do norte e dos seus cidadãos este apoio à sustentabilidade”.

Ataques a Guterres foram “injustos”

O subsecretário-geral da ONU Jorge Moreira da Silva considerou “injustos” os ataques do Governo israelita a António Guterres e realçou o “verdadeiro orgulho” e “grande apoio” que os funcionários das Nações Unidas têm manifestado ao secretário-geral.

Eu achei injusto e, tal como o secretário-geral referiu na altura, [as críticas israelitas] foram surpreendentes, na medida em que a argumentação que [Guterres] utilizou — e que nós [chefes de agências da ONU] temos utilizado — tem sido sempre a mesma“, disse Moreira da Silva, em entrevista à Lusa, em Nova Iorque.

A retórica da ONU tem sido pautada, segundo o subsecretário-geral, por “uma fortíssima condenação aos ataques perpetrados pelo Hamas, ataques hediondos, horrendos, que não têm perdão e, portanto, uma condenação cabal” dos mesmos, e também pela “exigência da libertação sem qualquer tipo de condição dos reféns israelitas”.

Porém, quer António Guterres, quer vários funcionários da ONU, têm feito afirmações claras em torno de outras duas dimensões: “primeiro, os palestinianos não podem sofrer uma punição coletiva pelos crimes perpetrados pelo Hamas, porque não faz qualquer sentido confundir os civis palestinianos com o Hamas“, reiterou o subsecretário-geral, que é também diretor executivo do Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS). Em segundo lugar, “uma claríssima afirmação de que até as guerras têm regras e que infraestruturas civis não podem ser atacadas, os civis não podem ser atacados e a ajuda humanitária tem que poder chegar em condições de segurança a todos os cidadãos mais necessitados”, acrescentou.

O líder das Nações Unidas tem feito nas últimas semanas apelos por um cessar-fogo humanitário na guerra entre Israel e o Hamas que transformou a Faixa de Gaza “num cemitério de crianças” palestinianas, segundo as suas palavras, e, numa reunião do Conselho de Segurança, afirmou que os ataques do grupo islamita “não vieram do nada”, lembrando que os palestinianos foram “sujeitos a 56 anos de ocupação sufocante”.

Declarações como esta desencadearam duras críticas de Israel a Guterres, com o Governo de Telavive a pedir a sua demissão do cargo de secretário-geral da ONU por considerar que está a justificar e a defender as ações do Hamas, um grupo considerado terrorista pela União Europeia e pelos Estados Unidos.

Após os ataques israelitas, seguiu-se uma onda de apoio ao secretário-geral, que, segundo Moreira da Silva, regista-se não apenas no seio das Nações Unidas, mas também por parte da “população em geral”.

Posso-lhe dizer que não me recordo de um momento de tão grande apoio a um secretário-geral das Nações Unidas como neste momento, seja por parte dos funcionários, que têm sentido um verdadeiro orgulho na forma firme como ele tem afirmado os seus pontos de vista em relação à mudança climática e agora em relação a estes conflitos, seja da parte da população em geral”, declarou.

Questionado sobre se a tensa relação entre Israel e Guterres afeta de alguma forma a capacidade da ONU de mediar este conflito, o líder da UNOPS avaliou que não. “Não, pelo contrário. Acho que isto coloca a ONU como uma organização fundamental no apoio àqueles que mais necessitam. Nós estamos no terreno, nós estamos lá para ajudar aqueles que mais necessitam”, defendeu.

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