Guerra à dívida ainda não está ganha

O envelhecimento da população irá colocar uma forte pressão sobre as contas públicas e é preciso aumentar a almofada.

98,7% do PIB. O número, que surge garrafal na primeira página do Powerpoint apresentado esta sexta-feira pelo Ministro das Finanças, serve de epítome para a obra de oito anos de António Costa. A descida da dívida pública em percentagem do produto é a “grande reforma” do Governo, como lhe chama Fernando Medina, à míngua de outras grandes, médias e pequenas.

Com eleições à porta, o Ministro das Finanças investiu todos os esforços no brilharete da dívida pública, até porque o do excedente orçamental só terá confirmação oficial pelo INE após as eleições. Nas últimas semanas e meses de 2023, a Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP) andou numa lufa-lufa a recomprar dívida nas mãos de bancos (2,7 mil milhões, só em dezembro) e o Governo a emagrecer a dívida do Estado aos privados na Saúde.

O propósito eleitoral não desmerece o resultado conseguido na redução do endividamento do Estado. Fernando Medina sairá com a dívida pública em percentagem do PIB mais baixa desde 2009 e uma redução de 9,4 mil milhões de euros no valor absoluto da dívida, algo inédito em democracia. Diz o ministro que este corte permite poupar 3,3 mil milhões em juros até 2034. Dividindo pelos 10 anos (330 milhões) é bem menos impressionante, mas é dinheiro que sobra para outros gastos.

Quando o ministro das Finanças entregou, em outubro, o Orçamento do Estado para 2024 previa que a dívida pública se cifrasse em 103% do PIB no final do ano passado. O Governo habituou-se a baixar a expetativa para depois fazer o brilharete, mas nunca por uma margem de 4,3 pontos percentuais. Ajudou o esforço do IGCP, mas também um crescimento maior que o anunciado do PIB no ano passado, de 2,3%, e um excedente orçamental que também terá ficado bem acima dos 0,8% previstos pelo Executivo.

O BPI estima que o excedente orçamental na ótica oficial tenha ficado “em torno de 1,8% do PIB”, embora saliente a incerteza do exercício. Um olhar mais fino para a execução orçamental do ano passado permite perceber que a receita fiscal ficou 1.500 milhões acima do previsto no Orçamento do Estado apresentado em outubro, que já continha uma revisão em alta. Já o investimento público, apesar de aumentar em 740 milhões, ficou mais de 700 milhões abaixo do estimado. Dois comportamentos que ajudam a explicar não só o êxito de 2023, mas também de anos anteriores.

A receita fiscal, já se sabe, beneficiou e muito do efeito da inflação, engordando em particular os impostos indiretos. É verdade que também puxou pela despesa corrente do Estado, em particular os salários, e pelos encargos com pensões. A subida dos preços e a retoma explicam grande parte da queda do rácio da dívida pública dos 135% do PIB (disparou com o mergulho da economia na covid-19) para os 98,7% em apenas três anos. Mas há também que reconhecer o empenho político na melhoria das contas do Estado, que levou, de resto, a várias subidas no rating de Portugal e a uma redução do risco do país nos mercados financeiros.

Todos ganham. As empresas e a banca financiam-se mais barato junto dos investidores. Os bancos podem praticar juros mais baixos nos créditos às famílias e negócios. Um país com maior credibilidade financeira consegue também atrair mais investimento estrangeiro. Quanto mais atrairia se conseguisse resolver os custos de contexto que persistem?

Apesar da redução do valor absoluto da dívida em 2023, esta aumentou 27 mil milhões desde 2015 (11,6%) para 263 mil milhões de euros. O que significa que se houver uma queda abrupta do PIB, como aconteceu na pandemia, o rácio do endividamento público irá disparar novamente.

Medina diz que a redução conseguida “dá liberdade ao país e liberdade às políticas públicas”. Pouca. Sendo o progresso positivo, a guerra não está ganha. O envelhecimento da população irá colocar uma forte pressão sobre as contas públicas na próxima década e é preciso aumentar a almofada.

As agruras do tempo da troika e uma década a puxar pelas “contas certas” parecem ter enraizado essa necessidade nos eleitores e na cultura política portuguesa. Espera-se que sirva de antídoto para desvarios orçamentais que já se ouviam na pré-campanha.

Quem cortou na dívida à séria foram mesmo as famílias, seja em percentagem do PIB – de 92% em 2012 para 56% em 2023 – seja em termos absolutos, de 156,4 mil milhões para 150 mil milhões, mostram os dados do Banco de Portugal.

 

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