Quanto mais ignorantes melhor?

  • Diogo Moura
  • 18 Março 2024

A quem aposta na mentira e no obscurantismo, talvez não fizesse mal frequentar o projecto SEED. Por mais doutoramentos em economia que exibam, o conhecimento nunca fez mal a ninguém.

Foi com pasmo – ou talvez não – que o país assistiu, no passado mês de Janeiro, a várias declarações políticas adversas à literacia financeira. De entre estas, sobressaíram e chamaram a atenção, qual acidente numa autoestrada, as declarações do Bloco de Esquerda. Perguntava este partido, na sua conta do X (ex-Twitter): «Sabias que altos níveis de “literacia financeira” tendem a corresponder a decisões financeiras irresponsável?»

Esta afirmação, feita em forma de pergunta, parte de uma abusiva leitura do título de um artigo académico no Journal of the Japanese and International Economies, de Kawamura, Mori, Motonishi e Ogawa. O título do artigo é “Is Financial Literacy Dangerous? Financial Literacy, Behavioral Factors, and Financial Choices of Households” (“A literacia financeira é perigosa? Literacia financeira, factores comportamentais, e escolhas financeiras dos agregados familiares”, numa tradução livre). Ora, se a transformação da pergunta de partida em afirmação final não fosse o suficiente para que o atrevimento espantasse, bastaria a leitura do resumo do artigo para se perceber o engodo e o propósito.

Partilho, na íntegra, o resumo, numa tradução livre para português: “Utilizando dados originais do inquérito japonês de 2018, elaborados especificamente para esse fim, estimamos os comportamentos e atitudes financeiras das famílias. Descobrimos que a literacia financeira desempenha um papel importante e consistente na tomada de decisões financeiras. No entanto, os comportamentos reais são contraintuitivos: pessoas com elevados níveis de literacia financeira tendem a assumir demasiados riscos, contrair empréstimos excessivos e ter atitudes financeiras ingénuas. Ou seja, a alfabetização financeira tende a fazer com que as pessoas se tornem ousadas e imprudentes em relação a alguns aspectos financeiros. Em contrapartida, as pessoas com literacia financeira são melhores no planeamento da reforma e são indiferentes ao jogo. Preferências como aversão ao risco e à perda e fatores de desconto também desempenham um papel nas escolhas financeiras“.

O abuso de interpretação é evidente, e explicar a diferença entre conhecimentos e comportamentos talvez seja desperdício de tempo a quem faz da mentira a arma de mão e da ignorância a sua seara. É claro que, quem tem mais informação e um perfil mais propício ao risco, conjugadamente, arrisca mais. Mas a informação e o conhecimento nunca podem ser preteridos em favor da ignorância e do obscurantismo.

Quem nos diz isso é o grupo de reflexão Bruegel que num estudo realizado sobre literacia financeira na Europa concluiu que “em média, apenas uma em cada duas pessoas na UE tem conhecimentos financeiros”. Sendo que “com uma média europeia a 27 Estados-membros de 52% de inquiridos que responderam corretamente a pelo menos três de cinco perguntas feitas, esta percentagem foi de 42% para os questionados em Portugal”, lê-se numa notícia aqui do ECO. Assim, o melhor resultado obtido foi o da Finlândia, com 73%, e o pior o da Roménia com 36%, logo seguido, na penúltima posição, por Portugal com 42%.

Ora, a mentira como modo e a ignorância como campo não é o nosso caso. Nos Novos Tempos e na CML gostamos de co-construir, com as pessoas que fazem a cidade, uma cidade informada e culta, feita de cidadãos responsáveis.

É isso que temos feito, em Lisboa, com o projecto SEED. O projecto SEED – Sensibilização para o Empreendedorismo e Inovação em Contexto Escolar visa promover o desenvolvimento de competências empreendedoras nos jovens – alunos do 9.º ao 12.º ano – procurando capacitá-los para a autonomia, criatividade, trabalho em equipa e inovação, e ainda reforçar a ligação entre a escola e o mundo do trabalho, no que consideramos ser um trabalho também de aprofundamento das relações com a comunidade local. Este projecto, que tem um ano, conta neste momento com 13 escolas secundárias e envolve 55 turmas e 1160 alunos. Mais: porque consideramos o envolvimento da comunidade local essencial na construção de uma cidade mais viva e co-construída, o projecto conta com doze parceiros.

Voltando ao estudo do Bruegel: Afirma esta instituição que “países com maior proporção de pessoas com conhecimentos financeiros têm um maior número de pessoas que poupam e pedem empréstimos a uma instituição financeira, o que indica que os conhecimentos financeiros podem melhorar a inclusão financeira” e ainda que “pessoas com mais conhecimentos financeiros são menos frágeis financeiramente, na medida em que conseguem cobrir as suas despesas em caso de perda súbita de rendimentos e estão mais confiantes de que terão fundos suficientes para se sustentarem durante a reforma”.

Muitos, como os que referi no início deste artigo, preferem cidadãos menores: menos informados, menos capacitados, menos autónomos. Talvez por, assim, se tornarem presas mais fáceis à mentira e ao sequestro. Repito: não é esse o nosso caso.

Com seis eixos de acção, o projecto SEED tem envolvido, capacitado e reforçado a preparação para a vida activa de mais de um milhar de jovens. Foi isso que tive oportunidade de testemunhar, recentemente, na Escola Secundária Marquês de Pombal, onde vi professores, alunos e parceiros entusiasmados a desenvolver, em ambiente prático, conceitos essenciais de empreendedorismo, designadamente, e entre outros, valor, transacção, negócio e recursos. E onde o estímulo à criação de projectos próprios surge como via potenciadora das apetências individuais e como esboço de um horizonte de uma vida mais autónoma e realizada.

A quem aposta na mentira e no obscurantismo, talvez não fizesse mal frequentar este projecto. Por mais doutoramentos em economia que exibam, o conhecimento nunca fez mal a ninguém.

Nota: O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

  • Diogo Moura
  • Vereador da CML com o pelouro da Economia e Inovação

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