Vota Revolta
O voto mudou mas há quem duvide que o país tenha mudado. O confronto das narrativas é a face visível de uma vida política em que o país não é a prioridade mas em que o poder é o objectivo.
Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem. Assim está a democracia portuguesa chocada com a súbita aceleração do tempo político. Após as eleições, os partidos tradicionais esquecem a “pedagogia da tolerância” e entram em modo de resistência política num pânico mal disfarçado. Diminuídos na sua dominação democrática eleitoral, os partidos do arco da governação refugiam-se nas tácticas e nos cálculos como se a política fosse um jogo jogado em circuito fechado.
O jogo político das contabilidades eleitorais e em que os meios e os fins não interessam a ninguém. Os meios e os fins interessam aos portugueses que com os seus votos invadiram o Parlamento com a “milícia” do Chega como uma explosão da realidade. Estas eleições se são alguma coisa serão certamente o regresso da política como um conflito entre “ideias inimigas” – nada no consenso, tudo no confronto. E já agora um “hino ao voto” de que se faz uma “canção de revolta”.
A sociedade portuguesa parece ter mudado e a política ocupada com o jogo e desocupada com a realidade é subitamente assaltada no seu reduto mais controlado – o bipartidarismo rotativista. A questão que deve ser levantada é se os partidos fundadores do regime democrático falharam no seu dever precisamente democrático. Em alternativa é reconhecer no resultado do Chega a institucionalização em Portugal do franchise político da nova internacional da direita radical, populista, pós-moderna.
Se a resposta é a falha do sistema democrático, procuram-se explicações e respostas, procuram-se pretextos e culpados, a fuga habitual que sempre ignora as causas e aumenta os preconceitos. Se a resposta está na tese do franchise então a institucionalização do Chega é uma fatalidade e a revelação de um Portugal moderno e modernizado em linha com as grandes tendências internacionais. O que não é possível é manter um discurso político em que Portugal é um país racista e xenófobo ao mesmo tempo que Portugal é o país menos racista e xenófobo da Europa. No meio século depois de Abril os portugueses perderam o medo de votar fascista. E a democracia não sabe como responder ao impulso democrático.
Com um país inclinado para a direita, a esquerda entra em negação e em modo de insurgência. Nega a ascensão da direita e tenta a reconstrução de um “frentismo de esquerda”. O “frentismo de esquerda” é o dispositivo político que concentra a superioridade moral e política com o espírito partizan. Quando a direita avança para os extremos a esquerda recua para os extremos. É o jogo político clássico do regresso da política como confronto entre inimigos e não adversários. Esta deslocação implica a destruição do centro como lugar nenhum da política. O Bloco de Esquerda entra em mobilização geral com a intenção de parar a ofensiva das forças reaccionárias ao serviço dos grandes interesses económicos. É a política da guerrilha para assegurar a sobrevivência ideológica. O PCP é o retrato de um Portugal que vai morrendo lentamente aos olhos dos portugueses. Portugal observa o PCP como um objecto político de outro tempo – a face vermelha da resistência a um Salazar de quem já ninguém se lembra. Há por aí tanta gente que não aprendeu nada.
A resistência urgente parece ser hoje o combate aos vícios e às fraquezas de uma democracia adormecida, instalada, distante da hora de ponta num comboio suburbano de uma grande cidade portuguesa. Dos comboios suprimidos e sobrelotados também nasce o voto do Chega. O Chega é o produto de um Portugal esquecido de norte a sul, do País rural e abandonado, do Portugal de todas as classes sociais cansadas com as eternas promessas da democracia, do país dos mais velhos com medo da pobreza das pensões e da morte, do Portugal dos mais jovens que querem viver no país da manhã que Abril promete e não cumpre. Chega são todos os portugueses que sufocam na sociedade democrática adiada. Os portugueses vivem e sofrem numa sociedade que lhes é estranha e detestável. O Chega não acrescenta nada, mas acrescenta a ilusão da esperança que a democracia tradicional deixou fugir do horizonte nacional.
No lugar nenhum do centro político, a AD encara o dilema da governabilidade. O PS em negação reclama a liderança da oposição. O PS está ainda agarrado à “política tradicional” e não quer enfrentar a complexidade da “nova política”. Os cenários sucedem-se em diálogos paralelos entre a integração do Chega e o isolamento do Chega.
O voto mudou mas há quem duvide que o país tenha mudado. O confronto das narrativas é a face visível de uma vida política em que o país não é a prioridade mas em que o poder é o objectivo. O patriotismo não pode depender de uma conjugação de resultados eleitorais favoráveis. O Chega é a maior força de bloqueio que a democracia portuguesa criou. Pode não fazer nada, mas não deixa fazer nada. Este é o maior impasse para um regime democrático bloqueado.
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