O programa e a realidade

Teria sido melhor apresentar um programa mais conciso, objetivo, em vez de uma listagem à partida impossível de cumprir, dando achas para que se queimem os políticos na fogueira das promessas falhadas

Como o inferno, também os programas eleitorais estão cheios de boas intenções. Muitas delas, provavelmente a maioria, nunca verá a luz do dia. O da Aliança Democrática não será diferente, condição agravada pela curta vantagem parlamentar.

Pecam também sempre pelo excesso. Parece haver uma obsessão em tocar todos os aspetos da vida do país e dos cidadãos, esmagando-nos com o papel omnipresente do Estado.

O resultado é uma profusão imensa de medidas e propostas enumeradas ao longo de 185 páginas. Só as que o Governo diz ter incluído de outros partidos são 60. Os programas do PS não eram diferentes, mas sempre vinham organizados em eixos estratégicos.

Quando tudo é prioritário, nada é prioritário. A AD podia ter aproveitado para sinalizar uma estratégia mais clara de desenvolvimento, apontando as áreas que acredita farão a diferença no futuro coletivo de Portugal, onde o país deve ambicionar a estar entre os melhores.

Os capítulos do documento parecem ora um conto de fadas, ora generalidades. Teria sido melhor apresentar um programa mais conciso, objetivo, em vez de uma listagem à partida impossível de cumprir, dando achas para que se queimem os políticos na fogueira das promessas falhadas.

O embate com a realidade chegou logo depois. A divulgação do programa de Governo começou mal, com uma inclusão avulsa e sem critério aparente de medidas dos restantes partidos. Algumas risíveis, como qualificar de cedência ao Chega decidir a breve trecho sobre o novo aeroporto, algo que já constava do programa eleitoral da AD. Ou achar que a boa vontade do PCP no Parlamento pode ser conseguida apenas com o apoio à indústria conserveira, ou a do Bloco com o reforço dos meios da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas e da Rede Nacional de Bibliotecas Escolares.

Percebe-se o objetivo, mas para ser sério não podia ser leviano.

O debate do programa de Governo ofereceu outra dose de realismo, já esperado. Luís Montenegro, que se mostrou bastante à vontade no novo papel e fez valer a sua experiência parlamentar, entrou bem, assinalando, agora sim, os nove temas em que o Governo se vai focar nos primeiros 60 dias, desde a descida do IRS e a execução dos fundos europeus, à negociação com polícias e professores, passando pelo combate à corrupção.

O novo primeiro-ministro quis vincular quem viabiliza o programa à sua execução ao longo da legislatura, “até ao final do mandato ou, no limite, até à apresentação de uma moção de censura”. A oposição não pareceu estar à espera que Luís Montenegro fosse tão longe, mas nem Pedro Nuno Santos nem André Ventura alinharam na cantiga.

O líder do PS veio aos Passos Perdidos falar às televisões para garantir que só se abstém para “não criar um impasse institucional e dar condições para o Governo iniciar funções”, pelo que “não se podem tirar conclusões sobre a forma como o PS lidará com a execução do programa de governo ao longo da legislatura”. E desafiou mesmo Luís Montenegro a apresentar uma moção de confiança, que o primeiro-ministro naturalmente recusou.

O programa de Governo sobreviverá esta sexta-feira às moções de rejeição de PCP e Bloco, bastando para isso quer o voto contra do Chega quer a abstenção do PS. A partir daí, tudo pode acontecer.

Os próximos meses serão carregados de vitimização, de acusações de falta de diálogo, de moções de censura na ponta da língua. O que for unânime e popular tem aprovação certa. O que não for, mesmo que aprovado apenas por decreto-lei do Governo, será chamado ao Parlamento através de um pedido de apreciação na Assembleia da República, donde poderá resultar a cessação do diploma. Será o caso, por exemplo, da privatização da TAP, onde Bloco, PCP e Livre já admitiram um entendimento.

Ao Executivo foi também servida mais uma dose de realismo orçamental e económico. O Conselho de Finanças Públicas deixou esta semana um apelo para que o novo Governo saiba “dosear pressões orçamentais e prevenir ou provisionar a materialização de riscos” e desenhe uma “política orçamental que não seja cega em relação ao futuro“.

A entidade liderada por Nazaré Costa Cabral está preocupada sobretudo com o impacto financeiro de grandes projetos de obras públicas, como o novo aeroporto ou a alta velocidade ferroviária, das reivindicações salariais das forças de segurança e dos professores ou da adoção de novas medidas de política orientadas para a redução da carga fiscal.

O Governo já tem, ele próprio, vindo a ajustar as expetativas. “O excedente de 2023 não deve criar falsas ilusões de prosperidade, nem alimentar a ideia de que todos os problemas podem ser imediatamente solucionados”, afirmou o novo ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, durante o debate.

Sem as medidas do programa do Governo, o Conselho de Finanças Públicas continua a prever a manutenção de excedentes orçamentais até 2028. Depois delas, deverá desaparecer.

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